Ilustrações do livro

Ilustrações do livro "Macabéa: flor de mulungu"

crédito: Luciana Nabuco/Divulgação

 

Quase meio século – 46 anos, exatamente – separam a publicação do livro “A hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector (1920-1977), de “Macabéa: flor de mulungu” (Oficina Raquel), obra recém-lançada da escritora mineira Conceição Evaristo. Quase meio século que marca o renascimento de uma das personagens femininas mais famosas da literatura brasileira, a silenciada Macabéa.


Último romance publicado de Clarice Lispector, “A hora da estrela”, retrata a vida dessa figura feminina marginalizada, apagada e abandonada pelas pessoas. Macabéa é uma imigrante nordestina que chega à capital sem família, dinheiro ou apoio, apresentada por um narrador homem, sem pudor e que não lhe dá voz ativa. Uma personagem que não tem nada, não sente nada ou reclama de nada, um recorte, ainda que amplo, da situação pelo qual ainda passavam as mulheres na época.


O mundo, porém, já não é mais o mesmo. Ainda que persista o machismo na sociedade brasileira, é inegável que, no intervalo temporal entre as duas obras, o país passou por inúmeras transformações em prol dos direitos e da visibilidade das mulheres. No mesmo ano do lançamento de “A hora da estrela”, 1977, a escritora Rachel de Queiroz foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. Em 1988, a Constituição Brasileira, a chamada “Constituição Cidadã”, passou a reconhecer as mulheres como iguais aos homens. Legislações fundamentais para a proteção da integridade física da mulher, as leis Maria da Penha e do Feminicídio foram sancionadas em 2006 e 2015, respectivamente. Em 2021, foi criada uma lei para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher.


A legislação acompanhou a mudança de mentalidade coletiva. A cada dia, as mulheres conquistam mais espaços e representatividade, e têm suas vozes ouvidas. É dentro deste contexto ainda difícil, mas bem diferente de 1977, que a principal personagem feminina de Clarice Lispector também se ergue. Ela merece passar pelas adaptações do tempo e das gerações para contar sua história. E foi exatamente isso que Conceição Evaristo fez.


A releitura “Macabéa: flor de mulungu” apresenta uma mulher forte, com vontades, gostos e sonhos, bem diferente da apagada Macabéa da versão original. A versão revista é intercalada por ilustrações inéditas criadas pela artista visual do Acre Luciana Nabuco, que desenvolve pesquisas em cultura popular.


Mais do que um tributo, Conceição Evaristo recria, de forma empática e potente, a história de Macabéa, que “desafia o tempo que se diz ser o do agouro e oferece o mel de suas flores às famintas aves, que pousam sobre ela”. A flor de mulungu, típica do Nordeste e considerada medicinal, com propriedades relaxantes e curativas, faz o papel de representar o renascimento de Macabéa. É que a planta passa por longos períodos sem florescer, mas possui uma flor de cor vívida, que transita entre o laranja e o vermelho, e domina a paisagem onde está, já que normalmente só surge no inverno, quando a maioria das outras árvores estão sem folhas.


Origem e ancestralidade, temáticas contínuas na obra de Conceição Evaristo, também se fazem presentes na releitura. Entre os fatores que dão força para o renascimento de Macabéa estão, justamente, as potências de seus antepassados negros e do Nordeste. “Macabéa ia se parir. Flor de mulungu tinha a potência da vida. Força motriz de um povo que resilientemente vai emoldurando o seu grito. Mulheres como Macabéa não morrem. Costumam ser porta-vozes de outras mulheres, iguais a elas, mesmo travestidas em Glórias, e também costumam ser intérpretes das dores de homens, cabras-machos, vítimas-algozes, como Olímpico de Jesus. Macabéa não ia morrer", escreve Conceição Evaristo na obra.


Na releitura, ao contrário da obra original, Macabéa não morre. Com isso, Conceição consegue construir novos contornos estruturais e emocionais à personagem e, de certa maneira, presta uma reparação literária para os maus tratos impostos à Macabéa de Clarice.


A mudança, porém, não tem como objetivo diminuir ou gerar comparações com o texto original. “‘A hora da estrela’ é uma leitura independente, um texto que que já está sedimentado, já está consagrado. Eu não acredito que ‘Macabéa: flor de mulungu vá influenciar e criar um novo olhar sobre a obra de Clarice. A obra dela já está aí, respeitosamente consagrada”, afirma Conceição Evaristo, em entrevista ao Pensar.


As ilustrações, de cores vibrantes, fazem o complemento perfeito para o texto, conduzido por um narrador de olhar sensível e astuto, retratar com delicadeza uma personagem que há tantos anos foi silenciada, em um evidente contraste a Rodrigo S. M., o narrador da versão original. Impossível não terminar o livro sem pensar na resiliência, na força e no empoderamento de todas as Macabéas que ainda seguem espalhadas pelo Brasil. Ou, nas palavras afetuosas da própria Conceição Evaristo: “Todas, elas e eu, nós precisamos de Macabéa, flor de mulungu”. 

l ‘‘Macabéa: flor de mulungu‘

l ‘‘Macabéa: flor de mulungu‘

Reprodução

‘‘Macabéa: flor de mulungu‘‘
Conceição Evaristo
Ilustrações de Luciana Nabuco
Editora Oficina Raquel
40 páginas
R$ 52

(*Estagiária sob supervisão do editor João Renato Faria)

 

Luciana Nabuco

Luciana Nabuco

Divulgação
 

Entrevista // Luciana Nabuco

‘‘Meu processo é o mergulho dentro dessa força
assombrosa que está na linguagem dessas escritoras’’

 

A união de Clarice Lispector com Conceição Evaristo ficou ainda mais forte com ilustrações. Como foi o processo criativo de construção das imagens para um livro que entrelaça duas gigantes da literatura brasileira?
O vaso mulher é o inconsciente da terra, lodo, lava, oceano abissal, somos um território profundo de onde emerge a criação, rupturas entre mundos. Conceição e Clarice são parte de uma cosmogonia do feminino, onde estivemos sempre produzindo memórias, criando e recriando linguagens, seja através das pinturas rupestres, corporais, seja através das narrativas de sonhos, seja através da força que nos faz caminhar por séculos de esmagamento da nossa criação. Meu processo é o mergulho dentro dessa força assombrosa que está na linguagem dessas escritoras, cruzo com a modernidade que não para de se reinventar.

Qual foi o seu objetivo ao criar as ilustrações do livro? No que se inspirou para a construção?
Em um mundo mecanicista, a arte é um processo do sonho, vai na contramão da ideia de utilidade, mercantilismo, liderança, modismo, mediocridade e fugacidade. A arte é ser. O artista não está, ele é. Assumir esse risco é provar de uma dose de veneno, morrer e voltar a renascer. Os caminhos são de lembrança. Ao emergir uma imagem, estamos ritualizando o sensível que nos habita. Eu costumo dizer, que minha pintura é meu ebó. Ebó é a troca, o ritual de movimento de energia. Tudo vem de modo intuitivo na minha criação, como o som das asas dos pássaros. Por isso cada pintura do livro é um ritual, eu converso com as imagens, eu as deixo repousar, eu me alegro e me assusto, e desse modo ela acontece, como água que brota da terra.

Quais foram as técnicas utilizadas para a confecção das pinturas do livro?
Em termos técnicos usei o papel algodão, com misturas diversas de pigmentos, óleo, pastel, acrílico, nanquim, carvão, urucum, folhas que guardei e foram secando ao longo de semanas, a palha do milho trazida em uma festividade para Oxóssi, goivas. Eu percebi que cada imagem era um sonho que precisava ser transmitido com esses materiais. Uma imensa encruzilhada de possibilidades foi surgindo e se impondo nessa construção.

 

Conceição evaristo

Conceição evaristo

Aline Macedo/Divulgação

Entrevista // Conceição Evaristo

‘‘Continuem lendo Clarice com toda a atenção que  a obra merece’’

Qual é o sentimento de trazer um novo olhar sobre essa obra? Como foi o processo de escrita do livro “Macabéa: flor de mulungu”?
Lembrar como foi o processo de escrita do livro “Macabéa: flor de mulungu” é um pouco difícil, porque esse conto foi escrito em 2012, a convite da editora Oficina Raquel. Eles quiseram fazer uma homenagem a Clarice Lispector e convidaram alguns escritores e escritoras para produzir um texto a partir de uma leitura, obra ou personagem criado por Clarice Lispector. Nesse momento, foram convidados Silviano Santiago, Vera Duarte, Godofredo de Oliveira Neto, Pedro Eiras e eu. Nós estávamos livres, então, para dialogar com a obra de Clarice Lispector. Eu escolhi dialogar com Macabéa, e Vera Duarte também.

Aos fãs de Clarice que forem adquirir a obra, qual mensagem gostaria de dizer a eles? E para as tantas “Macabéas” existentes pelo Brasil afora, mulheres silenciadas que precisam reconhecer suas origens para construir sua história, o que dizer a elas? Como o livro pode impacta-las?
Aos fãs de Clarice: continuem lendo Clarice, com toda a atenção que a obra merece, com toda a atenção que ela já vem sendo dada. Já para essas mulheres, eu diria que falar é poder. Exercer o direito à fala é se colocar no lugar de poder, no lugar de contar a sua própria história e não permitir jamais que o outro conte ou outro invente uma história sobre você. Às vezes as pessoas dizem que eu dou voz às mulheres negras. Porém, eu não dou voz às mulheres. Não dou voz à Macabéa. Eu falo com as mulheres, eu falo com a Macabéa. Eu falo como Macabéa.

No livro, você invoca a ancestralidade de Macabéa construindo uma nova trajetória para uma das personagens mais marcantes da literatura brasileira. Quais foram os desafios para encontrar o tom da escrita que empoderou a protagonista tão caprichosamente?
A linguagem é um desafio, poder falar é um desafio, poder escrever é um desafio. Empoderar a Macabéa é, de certa forma, também exercitar cada vez mais ações que empoderam as mulheres negras, pobres e indígenas. As mulheres, que por qualquer motivo, vivem em processos, em desafios para enfrentar uma vida marcada por interdição. Então empoderar Macabéa através da palavra é de, certa forma, também estar dentro de um exercício que eu experimentei e experimento ainda, o exercício de poder criar, de poder ser e de se afirmar, inclusive no campo da literatura. É poder ter uma linguagem própria, é poder ter a liberdade de criar e de ser, no meu exercício de criação literária.