Aleluia Heringer Lisboa, Diretora de ASG (Ambiental, Social e Governança) do Colégio Santo Agostinho

Aleluia Heringer Lisboa, Diretora de ASG (Ambiental, Social e Governança) do Colégio Santo Agostinho

arquivo pessoal

“Passa o olho” é aquela olhadela rápida nos filhos que estavam no quintal ou brincando na rua. Era uma checagem por amostragem e consistia basicamente em verificar se estavam vivos. Pais e mães entendiam que eram desprovidos dos atributos divinos, tais como onisciência, onipresença e onipotência. A eles, restava a conferência sucinta que só era possível porque o volume de itens a serem observados eram poucos e físicos.


Os objetos “indevidos” para o lugar ou idade precisavam ser pequenos o suficiente para caber no bolso ou debaixo da blusa. Gerir a educação dos filhos implicava nesse cuidado alargado na marcação dos tempos e nos contornos que reparavam os excessos. Se você tem filhos em idade escolar, saiba que seus pais ou avós foram criados nesse sistema. Imagino que sejam pessoas que você admira.


O tempo de ficar lá fora terminava com alguém gritando: “menino, está na hora de entrar!” Sujo ou suado, ao entrar, deixava lá fora, além do seu personagem, também seus segredos. Em casa, assumia seu lugar na hierarquia familiar. Tudo era de todos. A ideia de ser único, alguém muito especial, não era cultivada, além de não encontrar espaço nas próprias circunstâncias.


Era no interior da casa que todo o investimento da educação se dava. Os filhos assimilavam o nutriente dos valores, das crenças e tradições da família. Tudo isso referenciava o caminho do filhote. Nesse trajeto da rua e junto aos colegas de escola, ouvia e via coisas que não eram próprias ou contrárias de sua casa ou, às vezes, até mais ricas e avançadas; contudo, não eram classificadas como “contaminantes”. Ao contrário, o elemento estranho revolvia no seu interior, era depurado, gerava dúvida, mas era um movimento que fortalecia, assim como uma vacina produz anticorpos. Interessante que, se voltarmos às revistinhas da Mafalda, da Turma da Mônica ou do Menino Maluquinho (respectivamente, décadas de 1960,70 e 80), o adulto aparecia pouco ou da cintura para baixo ou só sua voz. O que era grande, cheio de protagonismo e aventuras, era o universo infantojuvenil.


Essa geração cresceu e gerou filhos e filhas. O “passar o olho” sofreu uma mudança profunda, proporcional à mudança do próprio mundo. Hoje, os espaços das casas, o tamanho das famílias, o ambiente rústico da terra, dos bichos, da água e árvores, encolheram. A dimensão corpórea se comprimiu, contudo a dimensão virtual se agigantou, com a diferença de que ela não se deixa abarcar pelo simples “passar o olho”.


A expectativa hoje é de uma infância e adolescência idealizadas com um grau de pureza e linearidade que passa longe daquilo que é razoável. Entram em ação, a todo momento, pais e mães helicópteros, superprotetores e supercontroladores. A aleatoriedade, a imprevisibilidade e os estressores, próprios de todo sistema vivo e orgânico, são vistos como ameaças e imediatamente tirados do ar. Fragilizamos a educação e as crianças.


Pais e mães têm uma atribuição preciosa e intransferível. Louvável o trabalho virtuoso de tantos que se reinventaram para dar conta desse contexto de ausência de solidez, excesso de liquidez e nuvens. Focam em uma maternidade ou paternidade do cuidado e não no controle. Estão por perto, mas não sufocam. Dão corda, mas não soltam a linha. Agem na medida e não roubam a cena que deveria ser do próprio filho ou filha.


Passar o olho continua sendo nutrir com elementos éticos e morais para enfrentarem o mundo. Dar-lhes exemplos, no trato com as pessoas, de civilidade, amorosidade, compaixão e respeito. Ensinar a ouvir todas as coisas e reter o que é bom. Diga: o que você não entendeu? Traga para a nossa conversa, mas devolva sempre com perguntas e não com as respostas. Faça-o exercitar sua musculatura argumentativa de base moral e ética. Na dúvida, ensine-o a pedir ajuda. Para cada idade, uma medida. Com tudo isso, não sobrará tempo nem energia na tarefa insana de ladrilhar com pedrinhas de brilhante a rua para o seu filhote passar.