‘‘A gente vivia no escuro pela falta de querosene e pelo peso da guerra"
Aos 98 anos, tia Zizinha relembra a Segunda Guerra em Minas: o medo, a escassez, a leitura do Estado de Minas e a comemoração do fim do conflito nas ruas
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Siga noEm 1945, ela era uma jovem de 18 anos que morava em São Sebastião do Campinho, distrito de Jaboticatubas, onde o medo e a escassez atravessaram até os lugares mais distantes do país. “Era um tempo triste, um clima ruim. A gente vivia no escuro, não só pela lamparina e pela falta de querosene, mas pelo peso da guerra no ar”, recorda
Atualmente moradora de Santa Luzia, na região metropolitana de BH, Terezinha Costa Moreira, 98 anos, mais conhecida com Tia Zizinha, guarda as memórias de um Brasil em racionamento, sem açúcar e sem gasolina, quando adoçar o café com rapadura virou regra, e andar em Belo Horizonte era quase poético: “Podia fechar os olhos nas ruas, porque não tinha mais carro”. O querosene, que mal aparecia, causava filas. “Quando chegava, era controlado. Todo mundo pegava só um pouquinho.
As notícias do conflito vinham pelo Estado de Minas, jornal que o pai assinava religiosamente. “A gente lia tudo. Às vezes, passava dias sem ninguém ir buscar o jornal em Jaboticatubas. Quando vinham três, quatro edições de uma vez, eu sentava e lia uma por uma.” Mais do que um hábito, virou um ritual. Tia Zizinha colecionava as cartas dos pracinhas publicadas pelo jornal, que vinham censuradas, acompanhadas apenas de fotos e palavras saudosas. “Eles não deixavam falar da fome, do frio, da morte. Só dos atos de bravura. Eu tinha todas essas cartas, mas minha irmã jogou fora um dia, limpando meu quarto”, lamenta.
Na memória de Tia Zizinha, um nome ainda ecoa com uma certa tristeza no olhar: o capelão Olavo, que lutou com a Força Expedicionária Brasileira. “Era professor de francês. Quando voltou da guerra, não era mais o mesmo. Ficou calado, com aquele olhar distante… Não voltou com a cabeça boa.” A guerra, diz ela, nunca sai de quem a viu de perto.
Mas também há lembrança de alívio. Ela conta como soube do fim da guerra: um grupo de amigos voltava de um passeio à luz da lua, com instrumentos musicais e comida – um dos poucos lazeres possíveis em 1945 – e encontrou a rua principal coberta de papéis picados, garrafas e restos de fogos. “A cidade tinha parado pra comemorar. Quando entrei em casa, meus pais estavam eufóricos: a guerra tinha acabado.” Era o fim de uma era de medo que começou com o torpedeamento de navios brasileiros. “A gente tinha muito medo. Quando a Alemanha afundou o submarino, sabíamos que o Brasil ia entrar de vez.”
Terezinha lembra da morte de Mussolini e do suicídio de Hitler. “Foi muito triste, sim. Mas a notícia, de certo modo, era um alívio. A gente estava cansado de tanta crueldade, de tanta covardia.”
Em tempos de escassez, Zizinha encontrou até uma maneira de empreender. “Comprei rapadura, fazia doce e vendia em Jaboticatubas. Muita gente não comia mais doce, mas então comecei a fazer usando a rapadura e vendia bem. Ganhei meu dinheirinho assim.”
Hoje, quase oito décadas depois, ela se entristece ao ver o mundo repetir os mesmos erros. “Essa guerra da Rússia e da Ucrânia… é muita desumanidade. A gente precisa deixar um mundo melhor pra quem vem depois.” Tia Zizinha não esquece o passado — e, com sua lucidez e delicadeza, segue nos lembrando que a paz, assim como o açúcar e o querosene, nunca deveria ser artigo de luxo.
Cartas censuradas
Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro, alinhado aos Aliados, instituiu um rígido sistema de censura sobre as cartas enviadas pelos soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB). O objetivo era preservar o moral da população e evitar que informações estratégicas ou relatos negativos chegassem ao público.Assim, menções a mortes, doenças, fome, frio ou sofrimento no front eram cortadas. As cartas que chegavam às famílias traziam, em geral, frases comedidas de saudade, esperança e orgulho, sempre acompanhadas de uma foto do autor — cuidadosamente selecionada para reforçar o ideal de bravura do pracinha brasileiro. A censura silenciava o horror da guerra e impunha um retrato oficial do heroísmo.
Alegria com fim da guerra
No dia 8 de maio de 1945, o anúncio da rendição da Alemanha ecoou em todo o mundo e provocou reações emocionadas também no Brasil. Nas capitais e pequenas cidades, o povo foi às ruas.Em Belo Horizonte, o jornal Estado de Minas noticiou buzinaços, celebrações na Praça Sete e orações nas igrejas. No interior, como lembra Terezinha da Costa Moreira, a comemoração teve papel picado, fogos de artifício e música nas ruas. Era o fim de anos de medo, racionamento e incertezas. O país, que enviou mais de 25 mil soldados à Itália, chorava seus mortos e celebrava a paz — ainda que as cicatrizes do conflito continuassem vivas na memória de toda uma geração.