A juíza Fabiana Ferreira de Melo, plantonista do TJMG, determinou que a prefeitura de Lagoa Santa autorize a celebração do 1º Cortejo de Iemanjá, marcada para este sábado (2/8), que será realizada na Praça Lagoa Central, em Lagoa Santa. No despacho, ela determina que o município e o prefeito Breno Salomão se abstenham de impedir, dificultar ou restringir, por qualquer meio, a realização do evento cultural-religioso no local e horário previstos, inclusive com a imposição de exigências administrativas não previstas legalmente e sem justificativa técnica idônea.
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A juíza reforça que a Constituição Federal garante a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias (Art. 5º, VI). Além disso, o Estado tem o dever de proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras (Art. 215, §1º).
O município de Lagoa Santa reconheceu a relevância cultural, religiosa e social do evento, bem como seu caráter de valorização da ancestralidade afro-brasileira e de combate à discriminação. Contudo, indeferiu o alvará com base em "questões ambientais", citando um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público de Minas Gerais aos 06 de junho de 2025, que impõe medidas de proteção na orla da Lagoa Central.
De acordo com a magistrada, apesar da invocação do TAC, a decisão municipal carece de maior detalhamento técnico sobre como a realização do evento, com as modificações propostas à Tenda de Umbanda Caboclo Pedra Branca, organizadora do evento (inclusive mudança de local para o "horto florestal" na Avenida Getúlio Vargas, sugerida pela própria Prefeitura), efetivamente comprometeria as ações de recuperação ambiental.
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Justificativa genérica
Para a juíza, a ausência de detalhamento torna a justificativa genérica. “É importante notar que o mesmo local, a Avenida Getúlio Vargas, é palco semanal de feiras com atrações culturais, som, estrutura e aglomeração, sem que os mesmos entraves sejam impostos aos outros eventos. Essa discrepância no tratamento sugere uma possível violação ao princípio da isonomia e pode caracterizar abuso de poder, pois a Administração Pública deve agir com motivação e coerência”.
A Tenda Caboclo Pedra Branca demonstrou esforço em cumprir as exigências municipais, inclusive com a apresentação de novo croqui e alteração do local do evento, o que, no entanto, resultou em arquivamento do processo sem análise de mérito. A resposta negativa da Translago, contradizendo suas próprias instruções anteriores, também fragiliza a postura da administração.
E concluiu: “A ausência de uma justificativa robusta e individualizada para o indeferimento, frente à insistência em entraves para um evento de matriz afro-brasileira, enquanto eventos similares (ou até de maior porte) são permitidos no mesmo espaço, aponta para a plausibilidade do direito invocado pela impetrante (entidade de umbanda). A não realização do evento na data programada causará danos irreparáveis à organização e aos participantes, que já arcaram com gastos e investimentos (como passagens e hotéis para convidados de outras cidades), além de ferir direitos fundamentais de liberdade de crença, culto e manifestação cultural protegidos constitucionalmente.
Diante do exposto e verificados os requisitos legais para a concessão da liminar em Mandado de Segurança, DEFIRO a medida liminar pleiteada, para:
a) AUTORIZAR a realização do evento “Celebração às Águas e à Cultura Afro-brasileira” no dia 02 de agosto de 2025, das 15h às 00h, na Avenida Getúlio Vargas, entre as ruas Expedicionários e Senador Modestino Gonçalves (local também referido como Praça do Piquenique Literário ou horto florestal, conforme petição inicial).
b) DETERMINAR que o MUNICÍPIO DE LAGOA SANTA e o PREFEITO DE LAGOA SANTA se abstenham de impedir, dificultar ou restringir, por qualquer meio, a realização do evento no local e horário autorizados, inclusive com a imposição de exigências administrativas não previstas legalmente e sem justificativa técnica idônea.
Já a advogada e ativista Carla Rodrigues, que entrou com o habeas-corpus nessa sexta-feira, a decisão da justiça é um importante reconhecimento do direito à livre manifestação da fé e à preservação da cultura afro-brasileira. “O evento 'Celebração às Águas e à Cultura Afro-brasileira' representa não apenas uma tradição ancestral, mas também um ato de resistência e afirmação da identidade dos povos de matriz africana. Garantir sua realização em espaço público é assegurar que o Estado respeite e proteja a diversidade religiosa e cultural prevista na Constituição. É uma vitória coletiva, que fortalece o diálogo, a convivência e o respeito entre os diferentes modos de existir e acreditar”.
Grito de resistência
Pai Erlon Câmara, sacerdote da Tenda Caboclo Pedra Branca, recebeu a decisão judicial com alívio e indignação: “É lamentável que, em pleno ano de 2025, precisamos recorrer à justiça para que possamos ter o direito de exercer, de fazer as práticas e rituais que são religiosos. Somos um país livre, um país laico, onde todos temos direito de professar a nossa fé. O poder público, além de não ajudar, querer atrapalhar uma celebração, é no mínimo desrespeitoso para não dizer criminoso. Lagoa Santa é um município que, por si só, tem características de uma cidade mais cosmopolita, que abriga pessoas de vários lugares, é uma cidade que acolhe pessoas e isso não condiz com a população de Lagoa Santa, que é uma população completamente aberta a vários cultos, a várias práticas, a todas as religiões. Ficamos indignados de precisar recorrer à justiça para tomar uma decisão de simplesmente fazer uma oferenda, fazer um culto, cantar os nossos cantos, professar a nossa fé, fazer as nossas orações e celebrar a ancestralidade africana, que por por centenas de anos foi apagada, deixada para trás, como se a comunidade negra, como povo negro, fosse inferior, como se fosse de uma maneira pior do que os outros”.
Pai Erlon ainda agradece a decisão da juíza Fabiana e vai além: “Gostaria também de parabenizar a excelentíssima juíza que deu aquele parecer tão bonito, tão correto, do jeito como tem que ser, que não foi enviesado e seguiu a lei, seguiu a Constituição do nosso país, como deve ser a justiça isenta e transparente. Ressalto também a resistência de todos os grupos, de todas as casas de umbanda e de Candomblé, que estarão hoje reunidas para celebrar. Nós temos diariamente que lutar, para manter o nosso povo de pé, para manter a nossa cabeça erguida diante de tantos desafios, que já temos no dia a dia e ainda passar por intolerâncias e por resistência e por racismo religioso”, finaliza.
Nota da prefeitura de Lagoa Santa
“A Prefeitura de Lagoa Santa informa que, embora respeite - em absoluto - as decisões judiciais, não houve comunicação de nenhuma ordem ao município no que diz respeito ao referido evento até o presente momento. Reforçamos que quaisquer manifestações religiosas não exigem autorização para a sua realização e, em cada consulta recebida, manifestamos o nosso integral respeito à pluralidade religiosa, apenas orientando que o Poder Executivo não enviaria efetivo para eventos em Área de Preservação Ambiental e, dada a mudança de local próximo à data marcada, não haveria tempo suficiente para o cumprimento das exigências legais com a responsabilidade rigorosa da atual gestão, como o fechamento de trânsito, por exemplo. Seguimos prezando pelo respeito à população e com franca abertura para diálogo e escuta atenta às demandas do lagoa-santense”.
Entenda o caso
Na tarde dessa sexta-feira, a advogada e ativista Carla Rodrigues entrou no Tribunal de Justiça de Minas Gerais com um habeas-corpus criminal contra a Prefeitura de Lagoa. O documento é uma representação de pedido de urgência para que o poder público da cidade mineira ofereça o alvará para a realização do evento cultural-religioso. De acordo com ela, o Templo Caboclo Pedra Branca, que organiza a celebração junto com outras 12 casas de umbanda, atendeu todos os requisitos solicitados pela prefeitura municipal. “Tudo ocorreu dentro do prazo, todas as modificações foram acatadas. “Não há motivo legal para que o cortejo e os shows de afoxé e samba não possam acontecer: Não vão silenciar nossos tambores, esses obstáculos têm nome: racismo religioso”.
De acordo com a advogada, a Constituição Federal garante o direito de manifestação religiosa e cultural sem necessidade de autorização prévia do poder público. Ela exige apenas a comunicação formal, que já foi feita. “O que estamos vivendo em Lagoa Santa é um caso claro de racismo religioso institucional. A cada dia surgem novas exigências e obstáculos para impedir a realização do 1º Cortejo de Iemanjá, enquanto outros eventos religiosos ocorrem livremente. Caso a repressão continue, estamos considerando, com base no direito constitucional, a possibilidade de ingresso com medidas judiciais de urgência para garantir o direito de realização do evento. Nossa fé é digna de respeito e não pode ser tratada como ameaça. Inclusive, após o evento, não descartamos a adoção de medidas judiciais cabíveis para responsabilização do poder público, inclusive por danos morais coletivos”.
Além da ação impetrada nesta madrugada, Carla Rodrigues acionou a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa, da OAB, além das deputadas que representam as Comissões de Direitos Humanos, sendo a Duda Salabert, na Câmara Federal, e Andreia de Jesus, na Assembléia Legislativa de Minas Gerais. “Estou indignada com tudo isso. |Sendo que tudo o que foi pedido a gente fez. Inclusive a mudança de local foi sugestão da própria prefeitura.
Iemanjá
De acordo com Pai Erlon Câmara, sacerdote do Templo Cabana Caboclo Pedra Branca, falar do cortejo de Iemanjá é falar de ancestralidade, do culto da “Rainha das Águas”: o culto da Iemanjá vem com a chegada dos africanos para o Brasil. Eles foram proibidos, por centenas de anos, de fazerem seus cultos e suas práticas religiosas. Por uma questão de sobrevivência, já que não podiam fazer uma referência à Iemanjá, eles começaram a fazer as homenagens para Nossa Senhora. Então, no sincretismo católico, ficou por muito tempo ligado à Virgem Maria. Agora, fazer essa homenagem, não é só resgatar todo esse tempo que foi perdido, mas reverenciar todas as práticas, todos os cultos, todos os cantos, a oralidade do aprendizado, a culinária, os elementos que foram perdidos e fazer esse cortejo, é trazer isso tudo à tona no mesmo momento e falar: estamos vivos, estamos presentes, e precisamos reverenciar isso de uma forma muito intensa e verdadeira”.
Cortejo de Iemanjá
Data: 2/8 (sábado)
Horário: A partir das 15h
Local: Praça Lagoa Central , Avenida Getúlio Vargas, 710, Lagoa Santa
Cortejo: 17 h
Belo Horizonte abraça a umbanda
Será que Lagoa Santa não está deixando de lado as pautas de diversidade e desrespeitando as religiões de matriz africana, apesar que, a umbanda é também uma religião cristã, pois tem Oxalá como representação de Cristo e líder máximo de suas crenças? Enquanto isso, Belo Horizonte já apoia e patrocina todos os eventos sem distinção religiosa. Tanto, que no próximo dia 16 de agosto, cerca de 50 terreiros, de diversas partes da capital mineira, farão o Encontro com Iemanjá, na Lagoa da Pampulha. Em sua página no Instagram, a Casa Pai Jacob do Oriente, organizadora da festa informa como será a programação:
“O Encontro com Iemanjá 2025 está chegando. São mais de 70 anos ocupando esse espaço sagrado. Com esse encontro que é memória viva e carrega muita tradição, ritos e muita ancestralidade. Na beira da lagoa, mais um ano, vamos nos reunir para agradecer, pedir e renovar energias com a Rainha do Mar. Iemanjá, Mãe das Cabeças, senhora das águas que curam e limpam, nos guia. A água que corre das quartinhas nas mãos das mais velhas abre caminhos e nos conecta com a nossa ancestralidade. Odoyá”
Data:16 de agosto de 2025
Horário: 19h
Local: Praça de Iemanjá – Rua Otacílio Negrão de Lima, 300 – Pampulha, BH
