Nada é impossível
Em nova aventura criativa, artista se inspira numa folha de papel para criar revestimentos
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Siga noSonho e realidade estão sempre bem próximos nas obras de Vik Muniz. O artista carioca – que se divide entre Brasil e Estados Unidos – já usou chocolate, açúcar, diamante, lixo, brinquedos e outros materiais inusitados para criar retratos. Amanhã, ele lança, em parceria com a Portobello, uma linha de revestimentos que reproduzem a porosidade e o toque sutil do papel. “Para desenvolver uma coisa realmente surpreendente, você tem que pensar no impossível. Pensar no possível é uma falta de ambição terrível”, dispara Vik, em entrevista exclusiva para o Estado de Minas, da sua casa, no Rio de Janeiro, horas antes de se fantasiar para um baile de pré-carnaval.
Você está acostumado a trabalhar com materiais não convencionais e aparticipar de projetos bem variados, mas como foi fazer arte em revestimentos?
Tentei ver de forma até um pouco mais poética a ideia de cobrir superfícies e fiquei pensando o que para mim é significante. Fui para o lado do toque. Eu mesmo coloco a mão nas obras de arte quando não estão me vendo. Já peguei na Monalisa. Fiquei um dia inteiro no Louvre fazendo um trabalho na parte de trás dela e me deixaram pegar. Tenho muito isso de tocar, sentir com a mão, essa coisa do prazer tátil das superfícies. Tenho fixação por papel e guardo uma quantidade imensa de tipos na minha casa. Nos últimos 10 anos, trabalho com a ideia do papel como protagonista, e não como suporte, e a coisa do toque é muito especial, quase como pele. Pensando nisso, vi que realmente não existia um revestimento que trouxesse a sensação da porosidade do papel. Acho que a gênese da coleção é estar entre imaginação e toque, uma das bases do meu trabalho. Para desenvolver uma coisa realmente surpreendente, você tem que pensar no impossível. Pensar no possível é uma falta de ambição terrível. Queria desenvolver uma superfície dura, resistente e de fácil manutenção, mas que tivesse todas as qualidades táteis de uma superfície frágil, não durável, que é o papel. Quase pode amassar. Chegamos a uma enganosa sutileza desse material. Muito discreto, por ser monocromático, ao mesmo tempo incrivelmente sofisticado. A coleção tem peças menores que parecem aquarelas, super coloridas e bonitas, com um brilho diferente, e uma linha de cobogós, que sempre quis fazer, uma espécie de vitral falso.
O que faz um artista como você, com quase 40 anos de carreira, empolgar-se com um trabalho?
Meu trabalho não é um acúmulo de obras, mas de experiências. A vida é um pouco assim também. Viver bem é acumular o máximo possível de experiências. Não dirigi táxi nem fiz programa, o resto fiz tudo. Fui bartender, cozinheiro, lavei prato cozinheiro, trabalhei em construção, já fiz demolição de casa. Se tenho uma carreira bem rica, se minhas obras são respeitadas em museus e faço palestras, é fruto de experiências que tive como jovem. Meu interesse não é ficar mais famoso, estou velho para isso, e nem ficar rico. Fazer coisas é o que mais me interessa. Voltando à sua pergunta, a minha ignorância, descobrir mundos. Quando você tem 63 anos, tudo o que quer fazer é o que não faz, quer ser outras coisas que você não é. Por causa do trabalho com a Portobello, estou montando um forno de cerâmica no meu estúdio.
O que uma pessoa precisa fazer para enxergar arte em qualquer tipo de matéria-prima?
Primeiro, se desvencilhar de todo e qualquer tipo de preconceito. Todo material é impregnado de potencial. Por isso que fotografo as coisas, às vezes não é aparente ao toque. Pensa no porcelanato, um material tão fantástico que veio substituir a maior parte dos revestimentos de todas as casas pela qualidade e pelo preço. Todo mundo tem e todo mundo usa. Acho muito bacana explorar suas principais qualidades, tem a ver com a poética do próprio material. Aí começo a ter uma relação afetiva. Trabalhei com lixo e comecei a gostar de lixo e sucata. Entre o lixo e o diamante, não faço a menor diferença, com todos posso criar coisas. O que me interessa não é o material, mas o processo que ele demanda. Esse tipo de interação com o mundo é que faz o meu trabalho.
Você trabalha com materiais do dia a dia, costuma representar personalidades da cultura pop e agora seu trabalho vai entrar nas casas das pessoas através da arquitetura. Qual é a importância de aproximar a arte do público?
Menos de 1% da população visitou um museu nos últimos 10 anos. Os artistas estão sempre reclamando da falta de interesse do público, mas fazem muito pouco para conquistar outros segmentos. Sou um ativista da ideia de inclusão no mundo da arte contemporânea, ela serve para tirar as pessoas da zona de conforto. Existe um grande elitismo que me enoja. A primeira vez em que meus pais pisaram numa galeria foi para ver uma exposição minha. O meu pai foi garçom a vida inteira e a minha mãe trabalhava em uma companhia telefônica, eles não tinham participação dentro da cultura. Tenho uma galeria de arte dentro da Feira de São Joaquim, em Salvador. As pessoas falam: “ai que bom, você vai trazer pessoal para a feira”. Não, as exposições são para o pessoal da feira. Cubo branco é bom para ver arte, mas o problema é que ele só existe em certas partes da sociedade. Todo mundo adora arte contemporânea, mas não sabe porque não tem acesso. Já fiz abertura de novela e meteram o pau em mim, fiquei horrorizado, falavam que eu era um ex-artista e perguntaram por que tinha feito aquilo. É simples: o seu trabalho é exposto por dois minutos inteiros, em seis dias por semana, de seis a nove meses, a uma média de 35 milhões de pessoas. Só se fosse um completo imbecil para não aceitar isso. Pego táxi em Macapá e o taxista se lembra da abertura. O Brasil inteiro assiste novela. Se pedissem, faria todo ano.
Fale sobre a sua obra “Boom”, da série “The Sarzedo Drawings”, de 2002, que faz parte do acervo do Inhotim, em Brumadinho.
Se fizer um círculo com traços, qualquer pessoa vai ver o sol. Só fiz um gesto. Se isso não for mágico, não sei o que é. Essa série é uma forma de recuperar a magia do desenho, seja em um grão de areia ou com uma escavadeira imensa. Queria fazer desenhos com escavadeira. Conversei com o Bernardo Paz, que tem uma mina em Brumadinho, e ele topou. Só poderia ser com um maluco como ele. Na época, não tinha o Inhotim, nenhum pavilhão, só a coleção original da casa. Lembro que chovia para burro e, como demorava para fazer os desenhos, ficava nessa casa comendo. A minha refeição preferida é frango com quiabo. A cozinha que mais amo é a mineira.
Qual é a sua relação com Minas Gerais?
Sou cidadão mineiro, tenho a Medalha da Inconfidência. Estava em Minas esta semana, é um dos lugares que amo de paixão. A minha maior alegria é ter uma casa em Minas. O meu avô era mineiro e transportava sal no alto da Serra da Mantiqueira, onde tenho a casa. Minas para mim é o lugar mais lindo do mundo, adoro mineiro. Tenho um problema. Sou paulistano e não tenho sotaque de nada, mas, se ficar três, quatro dias em Minas, já viro mineiro. Da mesma forma quando vou para Salvador, em três dias pareço baiano falando. Sou uma pessoa urbana, sempre morei em cidade grande, passei a maior parte da vida em Nova York e agora no Rio de Janeiro, mas amo roça. Faço queijo, com logo e tudo, tenho vaca, amo doce. Vou começar a fazer cachaça, já plantei e vou ter colheita no segundo semestre.
Você tem um autorretrato com recortes de revistas. Que outros materiais te representam e poderiam estar em uma arte autobiográfica?
Neosaldina (risos). Bebi muito ontem. Faço autorretrato sempre antes de qualquer série, é uma experiência para não ofender ninguém, por segurança. Se fosse vaidoso, faria por insegurança. Descobri que fazer retrato de pessoas é para se colocar no lugar delas, mas fazer autorretrato é para testar aquilo que não conseguiria fazer em outra pessoa. n