Galeria Ouvidor completou seis décadas de inauguração em março de 2024 -  (crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press)

Galeria Ouvidor completou seis décadas de inauguração em março de 2024

crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press

A Galeria Ouvidor, um dos centros comerciais mais antigos da capital mineira, completou seis décadas de existência neste mês de março, se reinventando, mas sem deixar de ser referência, comercial e afetiva, para a população de Belo Horizonte. E também para quem não é da capital, mas vem de fora para fazer compras. Localizada no Hipercentro de Belo Horizonte, a Ouvidor foi a primeira galeria a ser inaugurada na cidade, com direito a show da Rainha do Rádio, a cantora e atriz Ângela Maria.

O nome foi uma homenagem à rua carioca de mesmo nome, uma das mais importantes vias comerciais do Brasil. Planejada para ter inicialmente 353 lojas, a Galeria Ouvidor foi uma novidade em uma cidade que dava cada vez mais espaço a arranha-céus comerciais e residenciais. Hoje, são 245 lojas disponíveis, das quais 219 estão ocupadas e por onde chegam a passar quase 340 mil pessoas por mês em datas comerciais, como o Natal, ou cerca de 12 mil por mês, segundo comprova o sensor de entrada localizado nas duas portarias da galeria, nas ruas São Paulo e Curitiba.

A Ouvidor foi também a primeira a ter escada rolante em Belo Horizonte, segundo assegura o síndico, Valter Faustino, 17 anos à frente da administração da galeria, contestando o título também reivindicado pelo Edifício Maletta, na Avenida Augusto de Lima. “Com certeza a Galeria Ouvidor é o primeiro centro comercial de Belo Horizonte, quiçá de Minas Gerais, a ter uma escada rolante. E tem um detalhe importante que derruba o Malleta: as nossas estão funcionando normalmente e são originais da época da construção do prédio”, afirma Faustino, se referindo às escadas da galeria concorrente, há muito desativadas.

 

A Galeria Ouvidor, inicialmente, era aberta dia e noite, interligando as ruas São Paulo e Curitiba

A Galeria Ouvidor, inicialmente, era aberta dia e noite, interligando as ruas São Paulo e Curitiba

Túlio Santos/EM/D.A Press

Projeto teve arquiteto famoso

Inicialmente, a Ouvidor teria somente quatro andares, mas o projeto original foi alterado e acabou tendo dois a mais. Do projeto original resta apenas um belo esboço emoldurado que fica na parede da administração da galeria, o único registro memorialístico de uma construção que é um marco na cidade e que teve como arquiteto responsável pelo projeto o modernista Henri Friedlaender.


Ele assinou outras construções famosas de BH, como a Galeria Praça Sete, hoje conhecida como Galeria do Rock, também inaugurada em 1964, conforme destaca o arquiteto e pesquisador da memória arquitetônica de Belo Horizonte, Ulisses Morato. Além dessas duas galerias, Friedlaender foi o responsável pelo projeto de 10 edifícios de grande porte na cidade, entre eles o Panorama, prédio localizado na Avenida Afonso Pensa, tombado pelo patrimônio público.

 

Modificações na Ouvidor

Da construção inicial, restam algumas lembranças do edifício da Galeria Ouvidor, que não tinha portões e ligava, diuturnamente, a rua São Paulo à Curitiba. No entanto, como o prédio não foi tombado, parte das características originais vêm sendo alteradas. O guarda-corpo tubular dos andares está sendo trocado por acrílico e metalon. No último andar, ele já foi todo substituído para evitar quedas.

A Galeria Ouvidor teria, inicialmente, quatro andares. Atualmente são seis

A Galeria Ouvidor teria, inicialmente, quatro andares. Atualmente são seis

Túlio Santos/EM/D.A Press

É que nem tudo na galeria é glamour. A Ouvidor já foi palco de suicídios. Na conta do síndico e dos comerciantes mais antigos, sete ao todo. Mas de acordo com eles, isso não ocorre mais. A galeria hoje é totalmente monitorada por seguranças equipados em todos os andares, que abrigam um comércio diversificado, que vai de sexshopp a apliques de cabelo, passando pelas tradicionais lojas de venda de material para artesanato, marca registrada do centro comercial, relojoarias, joalherias, moda, sapataria, lanchonetes. “Tudo que você precisar tem na Galeria Ouvidor”, garante Faustino.

 

"Só tinham lojas luxo"

Mas quando foi inaugurada, a Ouvidor era um ponto de “coisas finas”. “Aqui só tinham lojas de luxo”, conta o cabelereiro Nero Almeida, que abriu o primeiro salão unissex da capital e está na mesma loja da galeria há 58 anos. Segundo ele, isso explica o fato de hoje a galeria abrigar muitas joalherias.

Natural de São João del-Rei, Nero fez curso de cabeleireiro no mais que centenário Salão Escola Bom Pastor, também localizado no Centro de BH, e resolveu tentar na época a sorte na recém-inaugurada galeria, que chegou a ter uma boate e uma loja de venda de urnas funerárias.

O cabelereiro Nero Almeida está na mesma loja da Ouvidor há 58 anos

O cabelereiro Nero Almeida está na mesma loja da Ouvidor há 58 anos

Túlio Santos/EM/D.A Press

O local, conta Nero, já teve muitos alfaiates e costureiras, quando roupas industrializadas não eram comuns. “Depois, vieram as confecções, lojas de couro, as peças para bijuteria, as roupas de festa e o material para artesanato. Hoje tem de tudo”, afirma.

O salão de Nero foi o primeiro unissex de Belo Horizonte

O salão de Nero foi o primeiro unissex de Belo Horizonte

Túlio Santos/EM/D.A Press

 

Um smoking para Dirceu Lopes

Quem também mantém uma mesma loja há 58 anos na Ouvidor é Hamilton Souza de Siqueira, de 78 anos, que hoje conserta sapatos e fabrica roupas de couro. Ele chegou a ter em sua loja, a HM Confecções, 17 alfaiates e costurou um smoking para o jogador Dirceu Lopes, um dos maiores ídolos da torcida do Cruzeiro. E exibe a foto do jogador vestindo, impecavelmente, a roupa.

“Aqui era um luxo só, mas eu nunca costurei, só desenhava os modelos. É que tenho muitas habilidades. Peguei com Deus, lá no Poço do Jacob”, comenta Siqueira, se referindo à fonte sagrada, localizada na Cisjordânia, na Palestina. É que antes de virar comerciante na Galeria Ouvidor, ele serviu na Força de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU), em Israel, na década de 60, e guarda em sua loja, em uma velha pasta de plástico, toda a memória desse tempo.

 

As lanchonetes da Ouvidor

A galeria também é conhecida pelas delícias servidas lá. Uma das maiores atrações é a Pastelaria do Ouvidor, no mesmo local há 56 anos e que exibe orgulhosamente o título de uma das mais antigas do Brasil. Tem também a Beto Churros. Na hora do lanche, o cliente mal consegue entrar de tão cheia.

O segredo, conta Maria do Rosário Chaves, que mantém a lanchonete junto com a família há três décadas, são os salgados caseiros, feitos com receitas dela mesma. Uma das atrações é a tortinha de liquidificador de sardinha, um clássico dos anos 80 e 90. Antes, conta Maria do Rosário, ela só era vendida na Quaresma, quando católicos não comem carne vermelha, mas, devido ao sucesso, entrou no cardápio diário.

Maria do Rosário mantém lanchonete na Ouvidor há 30 anos com a família

Maria do Rosário mantém lanchonete na Ouvidor há 30 anos com a família

Túlio Santos/EM/D.A Press

“Eu só lancho aqui. A coxinha é a melhor de BH”, afirma Magno Alves, há 35 anos dono da Aviamentos Ouvidor, vizinha à Beto Churros. Alves deixou a vida de representante comercial de calçados para vender aviamentos, em uma época em que as pessoas ainda costuravam artesanalmente. Passou, conta ele, por altos e baixos na galeria e viu, no balcão de sua loja, repleta de miudezas, todas as transformações da galeria, como a retirada da escada rolante do andar da Curitiba, mas não se arrepende da escolha.

 

O brilho das tiaras artesanais

Segundo ele, a pandemia foi o momento mais difícil, mas o carnaval reviveu as lojas de aviamento e artesanato. “O comércio ainda não se recuperou da pandemia, mas a galeria segue firme nesses anos, se virando e fazendo história”, conta Magno, orgulhosamente vestindo uma camiseta em alusão às seis décadas da Ouvidor.

 

 

Mas nem só de comerciantes antigos vive a história da galeria. Ela também preserva ofícios artesanais, hoje quase varridos do mapa pela importação de produtos. Caso do ourives José Ferreira, de 69 anos, que há cinco levou sua loja de confecção de tiaras e ornamentos de pedra para noivas e debutantes do histórico Edifício Vila Rica para a Galeria, em busca de maior visibilidade para seu trabalho totalmente artesanal.

O ourives José Ferreira fabrica tiaras manualmente para noivas e debutantes

O ourives José Ferreira fabrica tiaras manualmente para noivas e debutantes

Túlio Santos/EM/D.A Press

Lá mesmo, no mezanino da loja, ele fabrica suas peças ao gosto do cliente. “Em tempos de tudo importado, produzo aqui mesmo peças exclusivas, de todos os preços e modelos e para todo tipo de público. Desde quem tem mais dinheiro até quem não pode gastar muito, mas quer uma peça exclusiva para ficar bonita no casamento, baile de debutante ou festa”, afirma.

 

Memória afetiva de BH

Nascido em Belo Horizonte, o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), Marcelo Souza e Silva, lembra de visitar a Galeria Ouvidor para cortar o cabelo no salão do Nero e para comprar material para sua mãe, que confeccionava bolsas artesanais “e, claro, comer pastel”. “Cortei o cabelo no salão do Nero a vida toda. “Quando casei, fui levar o convite pessoalmente, mas ele não foi”, lembra. Segundo Marcelo Souza, sua loja virtual de presentes tem fornecedores que são da Ouvidor.

 

“A Galeria Ouvidor era um modelo entre o shopping e as lojas de rua que inicialmente nasceu para atender um público chique, mas que ao longo de sua história foi se requalificando para manter sua clientela”

Marcelo Souza e Silva, presidente da CDL/BH

Para ele, a inauguração foi um marco na cidade, um embrião do que seriam os shopping centers, que só chegaram na capital na década de 1980. “A Galeria Ouvidor era um modelo entre o shopping e as lojas de rua que inicialmente nasceu para atender um público chique, mas que ao longo de sua história foi se requalificando para manter sua clientela”, analisa.

 

 

Marcelo Souza diz que a galeria é a “cara de Belo Horizonte”, com “comércio e serviços em um ambiente receptivo”. Mesmo com a queda do movimento no Hipercentro, motivada segundo o presidente da CDL-BH pela descentralização do comércio e pelos problemas do trânsito, a galeria continua sendo referência.

 

Espaço democrático da capital

Para a historiadora Alexandra Nascimento, que estudou a sociabilidade e consumo nas galerias do Hipercentro de BH, a Ouvidor não é apenas uma referência comercial. “Mais do que isso. Ela é uma referência afetiva para os moradores de Belo Horizonte. Quem não tem uma história na Galeria Ouvidor, que seja a ida com a mãe para comer um pastel?”, questiona.

Foto publicada na edição do Estado de Minas em 23/6/1963 mostra a construção da Galeria Ouvidor

Foto publicada na edição do Estado de Minas em 23/6/1963 mostra a construção da Galeria Ouvidor

Arquivo EM

A Ouvidor pode ser entendida como um embrião do shopping center, mas Alexandra avalia que seu propósito é diferente. “Ela está em um espaço central, mais democrático. É um ponto de passagem, mas o mais importante é essa permanência das pessoas no espaço, a sociabilidade, a forma como nos relacionamos com ela. Você tem ali uma memória da cidade, do comércio e isso é muito importante”, defende.

 

Ulysses Vieira Chaves e Ari Vieira Chaves apresentam o empreendimento imobiliário da Galeria Ouvidor, em 1963

Ulysses Vieira Chaves e Ari Vieira Chaves apresentam o empreendimento imobiliário da Galeria Ouvidor, em 1963

Arquivo EM

Livro conta a história da Ouvidor

Mesma avaliação é feita pela designer e pesquisadora de desenvolvimento local e economia criativa Andrea Lacerda, autora de um livro sobre a galeria, cujo objetivo foi, segundo ela, contribuir para a “preservação da memória de lugares emblemáticos e históricos” do Hipercentro de BH. “Como a maioria das pessoas que moram em Belo Horizonte, tenho uma ligação afetiva com a galeria, lugar que frequentei e frequento muito ainda hoje”, conta a pesquisadora, que enfrentou dificuldades na busca por informações sobre o local, já que não há quase registros históricos.

 

“Ela está em um espaço central, mais democrático. Você tem ali uma memória da cidade, do comércio e isso é muito importante”

Alexandra Nascimento, historiadora

Os depoimentos dos comerciantes mais antigos foram essenciais nesse resgate da memória da Ouvidor. Foi Andrea Lacerda quem descobriu que ngela Maria cantou na inauguração da Galeria. Para a pesquisadora, a falta de registro histórico da primeira galeria da cidade tem a ver com o fato de o empreendimento ter sido enxergado no momento como meramente comercial e não como parte da história de BH. O livro de Andrea pode ser comprado na Ler Livraria, a única da Galeria Ouvidor.