Segundo promotores, administradora judicial não é imparcial por ter sido sócia de escritório que defende empresa
 -  (crédito: Juca Varella/Agência Brasil)

Segundo promotores, administradora judicial não é imparcial por ter sido sócia de escritório que defende empresa

crédito: Juca Varella/Agência Brasil

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) está sendo acusado de machismo por tentar afastar uma advogada da função de administradora do processo de recuperação judicial da 123milhas.

Segundo o órgão, Flavia Millard não tem imparcialidade suficiente para atuar no processo, visto que, há cinco anos, ela era sócia do escritório que hoje defende a empresa de viagem.

Em contrapartida, a defesa da advogada, representada pelo escritório Paoli Balbino e Barros - um dos três administradores judiciais do caso e de qual Millard é sócia atualmente - argumenta que a tentativa do MP-MG é baseada em denúncia absurda, machista, preconceituosa e odiosa.

"A tese levantada pelo Ministério Público tem o poder de afrontar o direito ao crescimento profissional de uma pessoa séria, competente, dedicada e capacitada, mediante o livre exercício da sua profissão na sua área de especialização", diz a defesa.

Em um processo de recuperação judicial, os administradores judiciais são nomeados pelo juiz para auxiliá-lo na fiscalização de documentos do processo e na interlocução com credores. Justamente por isso, o administrador tende a ser um profissional ou escritório de confiança do magistrado.

Na ação da 123milhas, Millard foi nomeada pela juíza Claudia Helena Batista e seu nome ratificado em segunda instância - ao contrário de outros dois administradores que foram substituídos pelo desembargador Alexandre Victor de Carvalho em dezembro por, segundo ele, falta de expertise.

O impasse em torno do nome de Millard traz mais incertezas ao processo, que está suspenso desde quinta-feira (25), um mês depois da rejeição aos outros dois administradores pelo TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais). A juíza suspendeu a ação para esperar o julgamento de recursos.

Millard trabalhou no escritório Bernardo Bicalho de 2016 a 2019, sendo que nos últimos dez meses foi sócia com capital social de 1%. Bernardo Bicalho é um escritório de advocacia empresarial conhecido em Minas Gerais e atua hoje como um dos advogados da 123milhas.

No pedido de suspeição, protocolado ainda em setembro, o MPMG diz que Millard já foi assessora do advogado Bernardo Bicalho de Alvarenga Mendes - atual defensor da 123milhas - e que tal relação de subordinação "compromete a sua atuação de forma isenta, causando, no mínimo, constrangimento entre as partes em face da relação anterior entre - chefe e sua assessora".

A promotoria baseia sua argumentação no documento de um processo de recuperação judicial de 2017, no qual Millard é tratada como assessora de Bicalho. O documento teria vindo a público a partir de uma denúncia de terceiros.

"Não se pretende aqui arguir a capacidade técnica da administradora judicial nomeada nem o descumprimento de deveres por ela, pois, o que se quer na espécie é o reconhecimento de sua suspeição e, por esse motivo, seja ela substituída como administradora, mirando uma melhor condução do feito desde o seu início, principalmente em se tratando de um processo de repercussão nacional, no qual mais de 700 mil credores terão interesse na isenção do trabalho do AJ [administratador judicial] e na sua supervisão", acrescenta a promotoria.

Millard não conversou com a Folha de S.Paulo, e Bicalho disse que irá se manifestar no processo caso seja intimado pela Justiça. Já os promotores que assinam o pedido não quiseram se manifestar.

Em manifestação ao tribunal, eles afirmam que o argumento da equipe da advogada é "fantasioso". "As demais ilações levantadas pela excepta [Millard] trata-se de mera tentativa de levantar uma 'cortina de fumaça' e politizar, desnecessariamente, os fatos."

Apesar dos argumentos do MP, especialistas consultados pela Folha não veem motivos para a suspeição da advogada. A constatação geral deles é de que cinco anos é tempo demais para vincular um profissional a um escritório.

"A nomeação do AJ cabe ao juiz e não existe vínculo atual entre a representante da AJ e o escritório da devedora", diz Daniel Carnio, ex-juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

A defesa de Millard também segue essa tese, mas se destacam no documento os longos parágrafos acusando de machista o pedido de suspeição do MP.

Seus advogados, por exemplo, dizem que ela é uma mulher negra que "por meio do seu esforço acadêmico e profissional obteve vasta especialização e expertise na área de insolvência empresarial, tornando-se uma das referências mineiras na atuação como administradora judicial".

"A mulher continua sendo colocada em relação de subserviência de um 'chefe' quase cinco anos após ter deixado seu escritório e sem que exista qualquer caráter de subordinação ou de amizade íntima", diz.

"Nada é mais claro e de conteúdo discriminatório! A mulher ainda não pode ascender profissionalmente, se tornando igual ou superior ao seu antigo chefe, pois permanecerá sempre tida como subserviente e subordinada."

Por fim, a defesa de Millard pede para que a Justiça de Minas Gerais acione a Comissão da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do estado para que se apure a denúncia que originou o pedido de suspeição.

Em dezembro, a juíza do caso incluiu na ação o Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial como amigo da corte, quando um terceiro participa do processo fornecendo subsídios à Justiça

A entidade, da qual Millard é membro, também criticou o pedido de suspeição do MP.

"Por qual razão uma profissional ilibada e isenta precisa estar eternamente vinculada ao escritório que já atuou anteriormente, de tal forma que não poderia vir a ser nomeada como administradora judicial em processo de relevância nacional?", questiona.

O centro também pede que a Justiça envie o caso para o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para que o órgão possa investigar os promotores que assinaram o pedido de suspeição.

O processo está agora em fase de instrução, quando as provas são acolhidas. Não há previsão de quando a Justiça tomará uma decisão, ainda mais com a suspensão de toda a recuperação judicial na última quinta-feira (25).

O sócio fundador do escritório Paoli Balbino disse à Folha de S. Paulo já considerar esse assunto já superado. Até porque, em caso de suspeição de Millard, o escritório continuará como administrador judicial - apenas a responsável será substituída.