No Brasil, onde o debate sobre direitos trans se intensifica em meio a uma polarização política acirrada, figuras como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) emergem como vozes proeminentes de uma direita conservadora que vê na identidade trans uma ameaça existencial. Em 8 de março de 2023, no Dia Internacional da Mulher, Ferreira subiu à tribuna da Câmara dos Deputados usando uma peruca loira, se apresentando como "Nikole" e declarando: "Mulheres estão perdendo espaço para homens que se sentem mulheres".
A fala, que viralizou nas redes sociais e gerou petições com mais de 150 mil assinaturas pela cassação de seu mandato, não é um incidente isolado. Ferreira, eleito com 1,4 milhão de votos em 2022 – o recorde para um deputado federal –, tem histórico de discursos transfóbicos, incluindo a exposição de uma criança trans usando banheiro feminino em uma escola mineira, o que o levou a investigações judiciais. Mas por que essa repulsa é tão visceral entre políticos de direita? A ciência política e a psicologia oferecem explicações robustas, apontando para uma mistura de defesas morais tradicionais, sensibilidade ao nojo e estratégias eleitorais calculadas.
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A ordem moral conservadora sob ataque
De acordo com a Teoria dos Fundamentos Morais (Moral Foundations Theory), desenvolvida pelo psicólogo Jonathan Haidt, liberais e conservadores constroem suas visões de mundo sobre bases intuitivas distintas. Liberais priorizam fundações como "Cuidado/Prejuízo" (preocupação com o bem-estar individual) e "Justiça/Reciprocidade" (equidade), enquanto conservadores valorizam igualmente essas, mas também "Lealdade/Grupo", "Autoridade/Respeito" e, especialmente, "Pureza/Santidade" – uma aversão a violações de normas sagradas, como a ordem de gênero tradicional.
Para Haidt, autor de The Righteous Mind (2012), "conservadores veem a pureza como essencial para a coesão social; qualquer desvio, como a fluidez de gênero, é percebido como uma contaminação moral que ameaça a estrutura familiar e divina da sociedade". No contexto brasileiro, onde 70-80% da base bolsonarista é evangélica, essa fundação ressoa profundamente: a identidade trans é vista como uma "degeneração" que erode o binarismo sexual divino.
Estudos confirmam essa dinâmica. Em pesquisa publicada no Journal of Personality and Social Psychology (2009), Graham, Haidt e Nosek analisaram respostas de milhares de americanos e encontraram que conservadores endossam as cinco fundações morais de forma equilibrada, enquanto liberais negligenciam as "binding" (ligadoras, como pureza).
Aplicado ao trans, isso explica por que discursos como o de Ferreira mobilizam eleitores: eles ativam medos de "contaminação" cultural. "A existência trans desafia a ontologia conservadora, onde gênero é imutável e biologicamente determinado", explica a psicóloga social Joanna Wuest, da Universidade de Nova York, em estudo sobre políticas de banheiros trans nos EUA (2018). "É uma guerra simbólica, não factual."
O nojo como mecanismo psicológico
A psicologia evolutiva vai além: a sensibilidade ao nojo (disgust sensitivity) é um preditor chave de atitudes anti-trans. Pesquisas de Inbar, Pizarro e Bloom (2009) mostram que indivíduos com alta sensibilidade ao nojo – mais comum entre conservadores – reagem a corpos trans como a violações tabus, ativando circuitos neurais semelhantes aos de sangue ou fezes.
No estudo "Transgender Politics as Body Politics" (Miller et al., 2017, Politics, Groups, and Identities), autores analisaram uma amostra nacional de americanos e encontraram que nojo e autoritarismo preveem oposição a direitos trans corporais (como uso de banheiros), com interação moderada: "A maior repulsa ocorre quando ambos são altos, transformando o trans em símbolo de impureza moral".
No Brasil, isso ecoa em falas como a de Ferreira, que em 2023 condenou o "ataque à mulher" por "homens que se vestem de mulher". A psicóloga Yoel Inbar, coautora de estudos sobre nojo e política, afirma: "Conservadores pontuam mais alto em pureza/santidade, e trans ativam o mesmo nojo que patógenos evolutivos; é uma defesa instintiva contra o 'outro' que contamina normas sociais". Terrizzi et al. (2013) corroboram: correlação forte entre nojo e preconceito anti-LGBT, especialmente anti-trans, em amostras de 1.000+ participantes.
Masculinidade ameaçada: a teoria do "Precarious Manhood"
Outro pilar é a masculinidade frágil. A teoria do "precarious manhood" (Bosson & Vandello, 2011, Current Directions in Psychological Science) postula que a masculinidade é um status "precário": conquistado por provas sociais e facilmente perdido, ao contrário da feminilidade, vista como inata. Trans, especialmente mulheres trans, são percebidas como "homens invadindo espaços femininos", ameaçando o status masculino.
Em "The Role of Masculinity Threat in Homonegativity and Transphobia" (2021, Sex Roles), pesquisadores poloneses expuseram homens a ameaças de gênero e mediram preconceito: "Ameaça à masculinidade aumenta transphobia em 25-30%, via necessidade de reafirmar normas tradicionais". Nos EUA, Costello et al. (2022) ligam isso à "manosphere" conservadora: homens com masculinidade precária reagem agressivamente a trans para restaurar privilégio. Winegard (2021) resume: "Trans representam perda de hierarquia masculina em uma era de feminismo e crise econômica". No Brasil pós-2015, com desemprego e instabilidade, isso amplifica o apelo de figuras como Ferreira, que usa TikTok (17,5 milhões de seguidores) para viralizar narrativas de "proteção às mulheres reais".
Estratégia eleitoral: o bode expiatório perfeito
Politicamente, trans são o "inimigo ideal": visíveis (apesar de 0,5-1% da população), mas minoritários, permitindo mobilização sem custo alto. No Brasil, onde 100 trans foram assassinadas em 2023 (líder mundial, per Transgender Europe), discursos como os de Ferreira crescem sua base evangélica. O cientista político Philip Edward Jones, da Universidade de Delaware, em estudo de 2018 (Public Opinion Quarterly), nota: "Trans polarizam: 80% dos republicanos nos EUA veem gênero como biológico; no Brasil, bolsonaristas usam isso para unir contra 'ideologia de gênero'".
Chris Bull, autor de Perfect Enemies (2001) sobre direita religiosa vs. LGBTQ+, alerta: "Republicanos – e bolsonaristas – abandonam 80% do eleitorado para cativar uma fatia evangélica radical; trans são o 'comunista de banheiro' moderno". No Brasil, isso rendeu a Ferreira influência em CPACs e alianças com Eduardo Bolsonaro.
Um desafio à democracia brasileira
Enquanto trans como Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) lutam no Congresso – enfrentando misgendering de Ferreira, que se recusa a usar pronomes femininos –, o STF condenou-o em 2023 a pagar R$ 80 mil por danos morais a Salabert. Hilton reage: "É nojento que brasileiros ainda votem em ódio; mas ocupamos espaços para mudar isso".
Referências bibliográficas principais:
- Miller, P. R., et al. (2017). *Transgender politics as body politics: Effects of disgust sensitivity and authoritarianism on transgender rights attitudes*. Politics, Groups, and Identities, 5(1), 4–20.
- Bosson, J. K., & Vandello, J. A. (2011). *Precarious manhood and its links to action and aggression. Current Directions in Psychological Science, 20(2), 82–86.
