Dois candidatos que se autodeclararam pardos no processo seletivo Sisu 2024 tiveram suas avaliações negadas em primeira instância nas universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e de São João del-Rei (UFSJ). Os alunos precisaram recorrer administrativamente e, após nova análise, as comissões de heteroidentificação das universidades, responsáveis por evitar a ocorrência de fraudes na política pública de reserva de vagas às cotas raciais, deferiram a aprovação deles.

 

Em seus recursos, os candidatos apresentaram fotos atuais e de quando eram crianças para comprovar que possuem traços negroides, necessários quando se trata de avaliações feitas exclusivamente por critérios fenotípicos. “Nós verificamos se a pessoa tem algum documento que constata que é parda, a ascendência e se ela já foi aprovada em outras comissões”, explica o advogado Israel Mattozo, especialista em Direito Administrativo e responsável por orientar os estudantes em seus recursos.

 

A partir disso, Mattozo explica que é feito um levantamento do que é proposto pela Lei nº 12.990 e pela Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 41). Segundo ele, ambas descrevem os aspectos que devem ser considerados para verificar se a pessoa cabe aos 20% de vagas reservadas às cotas raciais.

 

Falhas escancaradas

Os recursos também evidenciaram falhas cometidas pelas comissões preliminares. Nos dois casos, as autodeclarações negadas não vieram acompanhadas de nenhuma justificativa que motivasse o não acolhimento dos documentos.



O advogado questiona a postura que as bancas de heteroidentificação estão assumindo. “É uma postura completamente inadequada. As bancas estão assumindo o lugar de tribunal racial, o que é um equívoco gigantesco. O papel fundamental delas é evitar fraudes e não dizer qual pardo é mais merecedor de uma vaga em comparação a outro”. Ele afirma que, segundo a Lei, se houver dúvida a autodeclaração deve prevalecer.

 

Israel Mattozo ressalta que as comissões não estão seguindo as leis sob outros aspectos, como analisar apenas os aspectos fenotípicos. “A ADC 41 afirma que é necessário levar em consideração não apenas os traços, mas outros documentos declaratórios, a ascendência, aprovações em outras bancas e tudo aquilo que serve como prova de que a pessoa é parda”.

 

Para o advogado as bancas caem em subjetivação ao avaliarem somente se a pessoa apresenta a quantidade necessária destes aspectos para ser merecedor da vaga. “Se as bancas insistirem em definir quem é de fato pardo, os equívocos vão continuar acontecendo”.

 

Dores apagadas


Moradora de Ouro Branco, na Região Central de Minas Gerais, Letícia Vicentini foi uma das candidatas que teve seu recurso deferido. A jovem está matriculada em Medicina na USFJ e começa a estudar no segundo semestre de 2024. Ela comemora a decisão da comissão, mas lamenta o período que passou entre as duas avaliações.

 

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“Me senti frustrada por não ser reconhecida por algo que claramente sou e me identifico. É como se toda a minha vivência e minhas dores tivessem sido apagadas por alguém que não as viveu”.

 

A futura médica conta que se identificou como parda já na infância e ali teve ciência de que era diferente, principalmente dos grupos em que estava inserida. “Minha pele claramente era mais escura, minha boca tinha uma cor característica e era maior, e principalmente meu nariz, que é negroide. Infelizmente, descobri na pele que esses traços eram julgados como inferiores”.

 

Para ela, é imprescindível a capacitação das bancas avaliadoras. “Principalmente porque no Brasil, o racismo é refletido não só pela cor da pele, mas também pelos traços físicos, culturais e sociais do candidato”.

 

UFMG explica como funciona a banca de heteroidentificação

Em nota, a UFMG explicou como encaminha o processo pelas bancas de heteroidentificação.

"As bancas de heteroidentificação foram instauradas na UFMG em 2019, com a finalidade de fazer uma leitura social das características fenotípicas dos candidatos. Esses traços são os aspectos físicos do corpo, como o tipo de cabelo, o formato do nariz e da boca e a cor da pele. Assim, a banca busca compreender como a sociedade enxerga esse candidato, e se ele integra o público-alvo da política de ações afirmativas.

A banca, nomeada de Comissão Complementar à Autodeclaração, é composta por cinco membros, escolhidos entre aqueles designados pela Reitora da UFMG, com prévia experiência na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo. A avaliação é condição obrigatória para a efetivação da matrícula. Esse tipo de procedimento complementar à autodeclaração racial tem o objetivo de aumentar os custos de autodeclarações falsas, conduzir os candidatos a reflexões mais profundas sobre sua identificação racial e coibir a ocupação indevida de vagas.


Todos os candidatos têm o direito, caso sejam indeferidos na primeira banca, de serem avaliados por uma segunda, composta de cinco avaliadores que não participaram da primeira análise. Essa segunda banca, chamada de Recursal, proporciona a ampla defesa e o exercício do contraditório. A banca recursal não avalia fotos de familiares ou mesmo dos candidatos, realizando novamente uma avaliação do conjunto das características fenotípicas dos candidatos. Caso não concordem com as avaliações realizadas pelas bancas, os candidatos são informados de que têm o direito de contestar o resultado na Justiça.


Nos últimos anos temos recebido algumas demandas judiciais de candidatos indeferidos pela banca de heterogeneidade. Em todos estes casos, a Procuradoria Jurídica responde em juízo apresentando os detalhes do procedimento e as justificativas de indeferimento. Na maior parte dos casos, de posse das respostas da UFMG, a justiça tem mantido as decisões da universidade. Entretanto, não temos no momento estatísticas precisas sobre o percentual de decisões favoráveis à estudantes na justiça".

 

*Estagiária sob supervisão do subeditor Gabriel Felice

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