Mestre Inesita -  (crédito:  Lailah Gouvêa/Divulgação)

Mestre Inesita

crédito: Lailah Gouvêa/Divulgação

Minas é conhecida pelas montanhas, tradição, cidades históricas, sua gente e, claro, a culinária. Povo acolhedor que sabe receber diante de uma mesa farta e com uma variedade gastronômica de dar água na boca só de imaginar. Ter a mesa repleta de gostosuras com criações de receitas de família, passadas por gerações, é história corriqueira entre os mineiros de todos os cantos. E o Festival Feito Aqui só corrobora com tamanha riqueza criada na cozinha e patrimônio cultural do estado.


De 28 a 30 de novembro, Festival Feito Aqui se apresenta com a missão de defender a preservação da memória gastronômica de cultural de Minas Gerais. De olho no novo mundo, o evento ocorre no formato on-line, com destaque para a participação de três mestras da gastronomia mineira: Inesita, de Itabirito; Altivina, de Igarapé; e Lilia, de São Joaquim de Bicas.


Desde sua primeira edição, em 2015, em Nova Lima, o Feito Aqui nasceu como um projeto que busca (re)descobrir os tesouros culinários de Minas Gerais. Nesse ano, o evento está dividido em três episódios de 30 minutos cada, que vão ser exibidos gratuitamente no YouTube.

Cada episódio vai apresentar uma entrevista e a preparação de um prato típico da região de cada cozinheira. A ideia é descortinar como a culinária e os ingredientes típicos de Minas Gerais fazem parte da história de vida e familiar de Inesita, Altivina e Lilia, que são espelhos para o jeito mineiro de ser.


O Feito Aqui - Edição Especial também se propõe garantir que os saberes culinários mineiros alcancem e despertem o interesse da população em busca desses trabalhos e da preservação da história da cultura e gastronomia do estado. O projeto foi viabilizado por meio do Fundo Estadual de Cultura e tem a direção geral de Lailah Gouvêa, autora e diretora da gravação do documentário.


As mestras da culinária


Inês de Souza Lima, chamada por todos de dona Inesita, de 71 anos, é a guardiã da arte do pastel de angu de Itabirito, um dos símbolos da identidade da gastronomia local. Boa de conversa, alto astral, ela hoje é sinônimo da iguaria em terras mineiras, por onde anda para divulgar, dar cursos e contar histórias sobre essa delícia que faz há 24 anos, de modo artesanal e que "só eu boto a mão".

Mestre Altivina

Mestre Altivina

Lailah Gouvêa/Divulgação

"Além da herança dos saberes da família, fiz inúmeros cursos de pastel de angu, Sebrae, Senac, Mãos de Minas, e faço questão de ensinar e divulgar. O pastel de angu é tudo, me ajuda em tudo e ser sua representante me enche de orgulho. Faço com amor, carinho, é gostoso e só com temperos caseiros, naturais, da horta. E só eu coloco a mão, só aceito ajuda na hora de embalar".


Inesita gosta de dizer que é "padeira, confeiteira, doceira", enfim, cozinheira de mão cheia de sal e doce. E destaca com alegria que já criou nada menos do que "360 tipos de recheio do meu pastel de angu. Tem umbigo de banana defumado, tomate seco, abobrinha, berinjela, carne, frango e por aí vai".

Outra particularidade do pastel de angu de dona Inesita, sua assinatura, é que ela retrata a arquitetura da sua cidade na massa do pastel: a Estrada Real, o portal de Itabirito, a igreja, em objetos como as lamparinas e onde mais sua imaginação alcançar. É o seu jeito de inovar sem abrir mão da receita tradicional.


Inesita é casada com João Gabriel há 54 anos, tem três filhos (Stefânia, Silésio e Sirlei), netos e bisnetos: "Nossa, era uma luta com o marido para sair e fazer tanto curso de pastel de angu. Fazia as coisas da casa e ia correndo, não desistia de jeito nenhum", lembra a cozinheira.


Tantos cursos e a curiosidade fizeram com que Inesita se aprofundasse cada vez mais na história do pastel de angu. Ela conta no documentário do projeto “Feito Aqui - Edição Especial” que as criadoras dessa delícia foram duas escravas, Filó e Maria Conga, que faziam a massa com restos de angu cozido e usavam umbigo de bananeira como recheio ao invés de carne. As duas levavam os pastéis para a senzala e eram constantemente reprimidas por isso, muitas vezes chicoteadas. Os ferimentos, no entanto, cicatrizavam rapidamente, o que seria uma propriedade do umbigo de bananeira.


Dona Inesita conta essa história com orgulho. Ela é filha de mãe indígena e pai negro, escravizado. Depois de muita luta, hoje, além de aceitar encomendas do pastel de angu, ela dá aulas e palestras em universidades. Já ensinou até para japoneses como fazer o pastel.

"E sabe, tenho um sonho, ainda sonho. Quero escrever um livro registrando tudo que sei sobre o pastel de angu. E conta aí também que tenho toda uma preparação, não visto qualquer roupa na hora de preparar meu pastel. Faço questão de estar vestida como as escravas, vestido todo de renda (amarelo, na cor do pastel de angu) e turbante". E assim, tem seu nome como referência no modo de fazer no Patrimônio Imaterial de Itabirito.


Em folha de bananeira


Maria da Silva Maia, a mestre Lilia, de 70 anos, é daquelas mineiras que você passaria horas conversando, ouvindo as histórias, os saberes as lutas e vitórias da vida. Seu território é em São Joaquim de Bicas, onde passa os dias entre o forno, fogão a lenha, a horta de chuchu (é fornecedora do Ceasa), onde cria pavões e preserva uma grande mata nativa. Em seu paraíso particular, ela domina a arte dos biscoitos assados em folha de bananeira, iguaria que faz parte das quitandas de Minas. Ela guarda, assim, um dos mais saborosos tesouros da culinária do estado.

Mestra Lilia com sua fornada de biscoitos de povilho

Mestra Lilia faz biscoitos gigantes de polvilho doce, azedo e de angu tudo na folha de bananeira

Lailah Gouvêa/Divulgação


“Faço com toda minha vontade, carinho e vem de muito longe, carrego esta bagagem desde os 13 anos. Quanta água passou por debaixo da ponte. Faço por amor à memória da minha mãe, quem me ensinou. Ela tinha gosto e prazer em fazer e, graça a Deus, eu herdei o mesmo contentamento, tenho orgulho”, lembra Lilia, que ganhou fama com seus “biscoitos gigantes”, que são atração na região e fazem sucesso no Festival Igarapé Bem Temperado, em que ela é reverenciada como uma grande mestra.


Sem a presença do pai, Lilia foi criada pela mãe e avó. É viúva há 23 anos, tem cinco filhos, quatro netos e uma bisneta. Conta que calçou o primeiro chinelo aos 13 anos, feito de pneu, e o alimento preferido é o arroz, por ser uma raridade à mesa: “Tínhamos feijão, banha e todo tipo de verdura, hortaliça, mas arroz era caro, então, nasceu o desejo. Hoje, graças a Deus não falta nada”.

Vida dura, mas que nunca lhe tirou o sorriso, a esperança, a empatia e a busca de uma vida melhor alcança pelo talento de suas mãos na cozinha: “Sabe que o biscoito na folha de bananeira é porque, além do sabor, era uma forma de economia. Quem não tinha tanto poder aquisitivo para comprar formas usava a folha de bananeira porque era economia de dinheiro, de tempo, não precisava lavar a forma, pode fazer a quantidade de biscoito que quiser, não vai faltar forma, sempre tem folha de bananeira. Sem contar a tradição que faço questão de manter. Fui criada assim, nada de industrializado, tudo sempre vindo da terra”.


Lilia faz biscoitos de polvilho doce, azedo e de angu, tudo na folha de bananeira. Tem também a broa de fubá com queijo, coalhada, também na folha de bananeira. Como aprendeu com a mãe Maria, conhecida como Quita, uma quitandeira de primeira, que levava seus biscoitos para as fazendas de São Joaquim de Bicas e, assim, criou a família. Lilia, aliás, é conhecida como Lilia da Quita.


Além da bananeira, cheia de sabor e história, Lilia revela outro segredo de seus biscoitos que aprendeu com a mãe: “Varro o forno com alecrim do campo. O segredo para despertar a vontade nos vizinhos. Quando ele queima, o cheiro alcança 1km ao redor, anuncia que vai ter biscoito”, entrega a mestra, sem medo da concorrência: “Meu biscoito tem bagagem e, por isso, mais sabor, é gigante. E com as presenças do alecrim e da folha de bananeira, ele assa por completo, mais bonito, tem crocância, elegância e, com sabem, primeiro se come com os olhos”.


Guisadinhos de Igarapé


Guisadinhos preparados com angu e hortaliças não convencionais como cansanção, ora-pro-nóbis, beldroega, cariru de porco, folhas de batata doce, maria gondó, entre outros, acompanhados de galinha, costelinha... Mais um prato que carrega a alma da culinária mineira. Essa especialidade é preservada pelas mãos de Altivina Fonseca Machado, a mestra Altivina, de 80 anos, de Igarapé.


Altivina cresceu em uma fazenda e aprendeu a cozinhar aos 9 anos com pai: “Ele me ensinou desde pegar o frango no quintal, matar, depenar, limpar, refogar até levar para o prato. Dei conta, ficou uma delícia e nunca mais parei de cozinhar. Tomei gosto. E ele disse, ‘agora que aprendeu, toma conta’. E como minha mãe não comia o frango que matava, quando passei a cozinhar ela pôde comer do meu e gostava”.


Viúva cedo e com os filhos para sustentar, Altivina começou a ter renda com pastéis, depois pé de moleque, uma receita inovadora, que a faz hoje fornecer para a Europa regularmente: “Criei a receita, testei até dar certo e depois ganhou o mundo, nunca imaginei. Fico feliz”. E como tudo que faz tem sabor especial, os seus guisadinhos trilham o mesmo caminho de sucesso, um dos pratos de maior sucesso no Festival Igarapé Temperado, que ocorre anualmente, com sua presença desde a primeira edição.


Altivina conta que “preparamos os guisadinhos quanto temos um pouco de quiabo então, dizemos, vou preparar um guisadinho de quiabo, que pode ser de couve, cansanção, que é bem gostoso, com carne de porco, linguiça, enfim, uma tradição em Igarapé. Faço também com umbigo de banana, que é delicioso. Aprendi com minha avó, mãe e pai, que sempre gostaram de cozinhar”.


A mestra lembra ainda que faz uma “sopa de galinha’ das mais saborosas porque tudo que cozinha “é com amor e carinho”.


Serviço

Festival Feito Aqui

De 28 a 30 de novembro

Acesse: https://www.youtube.com/@Feitoaqui