Leia entrevista de autores da série 'O monstro de Florença, nº1 da Netflix
Stefano Sollima e Leonardo Fasoli, criadores do seriado italiano, resgatam crimes bárbaros de serial killer que até hoje não foram elucidados
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CARLOS HELÍ DE ALMEIDA
Especial para o Estado de Minas
Em 1968, a Itália acordou escandalizada com o massacre de um casal dentro de um carro parado à beira de uma estrada nos arredores de Florença. Crimes brutais semelhantes foram cometidos em 1974, 1981 e 1985, com as mesmas características: carros com amantes em busca de privacidade, uso de pistola Baretta calibre 22 e mutilação sexual da vítima do sexo feminino.
Livros, documentários e diferentes teorias online já tentaram destrinchar o assassinato em série, mas a identidade do criminoso – ou criminosos – permanece desconhecida até hoje, apesar da investigação que se estendeu por mais de 20 anos. Mas isso não foi um problema para o diretor Stefano Sollima e o roteirista Leonardo Fasoli, coautores da recém-lançada “O monstro de Florença”, série líder do Top 10 da Netflix no Brasil.
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A produção evita o caminho da reconstituição da investigação policial e concentra-se em quatro suspeitos. Cada episódio explora o perfil de um investigado – Stefano Mele, Salvatore Vinci, Francesco Vinci e Giovanni Mele –, destacando a problemática relação deles com as mulheres e recriando o contexto social dos crimes, marcado por machismo e violência.
A dupla de criadores das séries “Gomorra” (2014) e “Zerozerozero” (2019) não estava interessada em desvendar o caso, mas colocar o espectador no meio da investigação. “Não queremos que o espectador seja influenciado por nosso ponto de vista, queremos que ele tente entender o que aconteceu”, destacou Sollina, durante o Festival de Veneza, onde “O monstro de Florença” ganhou première. Nesta entrevista, a dupla comenta o seriado.
Abusos e crimes contra mulheres ocorrem na Itália hoje. Por que resgatar crimes de décadas atrás?
Stefano Sollima – Porque sentimos que ainda é relevante. É um caso que começou quase 60 anos atrás, que fala de uma cultura específica, rural, patriarcal, de um sistema familiar muito preciso, no qual o homem detinha poder absoluto sobre as mulheres, praticamente obrigadas a se casar e ficar totalmente subordinadas aos maridos. O último crime relacionado ao caso aconteceu há quarenta anos, mas é uma cultura masculina que considero bastante atual.
Leonardo Fasoli – Além dos crimes, consideramos o mundo psicológico dos personagens envolvidos. Foi muito interessante explorar o caos que surgiu do mundo psicológico, que levou àquela brutalidade. A série fala de uma sociedade patriarcal, que passou por desenvolvimento industrial acelerado, onde havia muita repressão sexual – até porque vivemos em um país católico. Então, o sexo é inibido até certo ponto, o que leva as pessoas a comportamentos diferentes e estranhos. E isso se reflete hoje também.
Foi difícil chegar ao consenso sobre como mostrar cenas de crimes sexuais sem abusar da violência que pudesse chocar o público?
Sollima – Fazer a pesquisa para a série foi uma das coisas mais difíceis da minha vida, porque fomos obrigados a ver imagens que preferíamos não ter visto. Tivemos de reescrever o roteiro muitas vezes, pois não queríamos forçar muito para mostrar o horror dos crimes, porque seria como se estivéssemos instrumentalizando a violência. Então demos um passo para trás. Por outro lado, não podíamos nos conter muito, porque seria uma espécie de censura. A questão era encontrar o equilíbrio. Resolvemos mostrar o mínimo possível para fazer as pessoas entenderem a brutalidade dos homicídios.
A série se filia ao “true crime”. Vocês conseguem entender o interesse do público por esse tipo de thriller?
Sollima – “Gomorra” e “Zerozerozero” eram sobre o universo do crime, mas não podemos chamá-las de “true crime”. Fiquei realmente chocado com tudo o que li sobre o monstro de Florença, virou obsessão para mim. É uma espécie de história de crime de gênero que, até certo ponto, está ligada ao “true crime”, que fala da Itália naquela época, algo que nunca havia sido feito antes no cinema.
Fasoli – Há coisas terríveis acontecendo no mundo hoje, as pessoas estão obcecadas e curiosas sobre o que se passa na mente dos criminosos. Acho que é daí que vem o interesse do público. No passado, esse tipo de crime era tido como muito brutal, pouco comum, chocava a todos e gerava reações. Mas hoje eles se tornaram eventos comuns, normais, consumidos avidamente. Por que isso? A série foi uma tentativa de ir além, aprender e entender o que estava acontecendo e o que está acontecendo conosco.
O fato de vocês trabalharem sobre um caso não resolvido lhes deu mais liberdade para criar?
Sollima – Tornou tudo mais difícil, até porque usamos os nomes reais das pessoas envolvidas. Então, não poderíamos cometer erros. Mas isso nos permitiu ter um retrato mais amplo da nossa sociedade. Não era apenas uma questão de descobrir o assassino, que é a mecânica do thriller. Se você ler todos os documentos do longo processo em torno dos quatro suspeitos, você encontra elementos para defini-los como monstros, mesmo que eles não sejam o verdadeiro monstro de Florença.
Fasoli – Escolhemos trabalhar com todos os limites. Tínhamos grande quantidade de realidade, de relatórios, fotos, mil coisas. E dissemos: sim, nós podemos contar a história, mas sem a nossa fantasia.
“O MONSTRO DE FLORENÇA”
• Minissérie em quatro episódios, disponível na plataforma Netflix.