“O som que o Hermeto (Pascoal) fazia não parecia com nada já criado. Era extremamente original. Parecia-se com Hermeto Pascoal”, resume o saxofonista, flautista, compositor e arranjador mineiro Nivaldo Ornelas sobre o amigo de Alagoas, que morreu na noite de sábado (13/9), aos 89 anos.
Ornelas estava no palco do Teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas na hora da morte do “Bruxo” – como Hermeto Pascoal era chamado –, substituindo o alagoano, que tinha cancelado sua apresentação dentro da programação do Festival Acessa BH dias antes por motivos de saúde.
“Foi uma loucura. Quando acabamos a apresentação, o Fábio Pascoal, filho do Hermeto, subiu no palco, comunicou a morte do pai e leu um texto. Nós, os músicos – Ornelas se apresentou com a banda Nave Mãe, fundada pelo próprio Hermeto –, e o público ficamos perdidos, sem saber o que fazer”, lembra o mineiro ao Estado de Minas.
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O texto lido que Ornelas se refere é um poema do Bruxo que diz: “salve salve a toda a gente / que vive e deixa viver / aqui vai o nosso abraço / com o som e o saber”, que foi declamado por Fábio Pascoal, tendo o público como coro.
CHALEIRA, SERROTE E TAMANCO
Verdadeiro gênio da música brasileira, Hermeto ficou conhecido pela capacidade de transcender os instrumentos musicais convencionais, transformando o cotidiano e a natureza em fontes inesgotáveis de sonoridade. Ele fez música com chaleira, garrafa, tamanco, serrote, sugador de saliva, a própria barba, e até mesmo com animais como porcos, galinhas e cachorros. Havia música em tudo, segundo o Bruxo: no barulho de insetos, no trânsito de São Paulo, no trote de burros e no canto de pássaros, o que ele chamava de “música universal”.
“Em 1979, a gente estava tocando junto no Festival de Montreux, na Suíça, quando o Hermeto pediu um copo de caipirinha, posicionou o canudo próximo ao microfone e, soprando bolhas de ar dentro da caipirinha, fez uma performance musical”, lembra Ornelas, que, ao longo da carreira, tocou na banda de Hermeto em duas ocasiões. “Na mesma apresentação, ele transformou um megafone – desses que nós vemos a polícia usando em filmes – em instrumento e improvisou ao vivo”, acrescenta.
Além da criatividade na criação de sons – que não eram explorados de maneira aleatória, mas seguindo uma construção harmônica –, Hermeto também foi defensor ferrenho da improvisação musical, acreditando que a criação artística brotava do momento, sem a rigidez de partituras ou ensaios pré-determinados. Em contrapartida, era muito rigoroso com os músicos que o acompanhavam. Sua banda chegava a ensaiar 16 horas por dia, conforme conta o cofundador do grupo Uakti, Paulo Santos.
“Quando nós, do Uakti, ficamos sabendo disso, decidimos que iríamos ensaiar 17 horas diárias para tentar ficar igual a ele”, brinca Paulo.
AUTODIDATA
Tendo estudado somente até o terceiro ano do ensino fundamental, Hermeto também aprendeu música de forma intuitiva. De acordo com ele, quanto mais teoria o indivíduo tem, mais ele sabe e menos sente. Foi assim que ele aprendeu a tocar uma infinidade de instrumentos – tinha absurda facilidade com os de teclas.
As raízes da genialidade estavam profundamente conectadas à infância em Olho d'Água, povoado próximo a Lagoa Grande, em Alagoas. Nascido albino e com baixa visão, Hermeto desenvolveu sensibilidade para os sons ao redor, desde os da natureza até os ruídos do ofício de seu avô ferreiro.
Em suas músicas, Hermeto incorporava ao jazz ritmos brasileiros como o baião, forró, samba e frevo. “Ele era um pianista de jazz, mas o jazz dele não tinha os trejeitos e a sonoridade do jazz americano”, avalia Ornelas. “Era uma coisa mais Brasil, Nordeste. Algo contemporâneo”, complementa.
O legado do Bruxo ultrapassou as fronteiras do Brasil. Em 1971, Miles Davis, o icônico jazzista, o convidou para tocar em seu disco “Live – Evil” e chegou a gravar três composições de Hermeto ("Little church", "Selim" e "Nem um talvez"), embora não tenha crédito ao brasileiro. Davis o apelidou de "crazy albino" e afirmou que, se pudesse reencarnar, escolheria ser Hermeto.
“O Hermeto sempre foi uma referência de qualidade e excelência musical, tanto em relação à técnica quanto à composição. Ele fez um calendário de música”, ressalta Paulo, lembrando que o alagoano influenciou diretamente o Uakti na criação de instrumentos.
Hermeto deixa um legado imenso, sendo considerado um “patrimônio da nossa cultura” pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, em publicação no X. Já o presidente Lula lembrou que o Bruxo “sempre nos ensinou a não deixar a tristeza dominar. “Por isso, convido os brasileiros a celebrarem sua história e sua música”, também escreveu no X.
Hermeto deixa seis filhos, 13 netos e 10 bisnetos. O velório será aberto ao público, nesta segunda-feira (15/9), na Areninha Cultural Hermeto Pascoal, em Bangu, no Rio de Janeiro. (Com agências)
