"Furiosa", da saga "Mad Max", comprova o vigor do cinema de espetáculo
Filme de George Milles, que estreia nesta quinta (23/5) em BH, é um alento em meio a seriados irrelevantes e blockbusters decadentes
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Nove anos depois de “Mad Max: Estrada da fúria”, o longa “Furiosa” repete o feito do anterior, com um filme de ação capaz de mostrar, numa safra de decadência do blockbuster, a beleza do cinema de espetáculo. Sim, mas de uma forma diferente.
Felizmente, esta é uma nova prova do talento de George Miller, responsável pela direção de todos os filmes da franquia apocalíptica iniciada no final dos anos 1970.
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Mas se “Estrada da fúria” tinha textura única ao realçar pilhas de carros, explosões e muitos dublês com a pós-produção digital, aqui é evidente que muito de seus exageros, motocas e caminhões tunados nasceram pela computação gráfica.
Não é um problema em si. Vide todas as dificuldades dos bastidores de “Estrada da fúria”, é uma boa solução para dar vazão à criatividade do diretor conhecido por projetos megalomaníacos, quase irrealizáveis.
Mas também por isso nem sempre a ação tem o peso que sugere, entre lança-chamas, correntes, escopetas e toda sorte de lixo e bugigangas que voam pela tela em vez do humor físico da obra anterior, com traços da comédia de Buster Keaton.
Artesanato e molecagem
Miller, porém, compensa essas questões técnicas recorrendo à infalível linguagem cinematográfica, que, bem utilizada, divide o artesanato da molecagem.
Entenda-se, “Estrada da fúria” é um “tour de force” difícil de repetir. Já “Furiosa”, que gosta do olhar irado de Anya Taylor-Joy, no papel-título, tanto quanto da ação, mira uma história de formação vagarosa, que atravessa mais de uma década em cinco atos, com direito a intertítulos.
No mar de “prequels” incompetentes, o filme é uma boa lição de como fazer cinema relevante em séries atreladas ao mercado. É uma jornada de vingança clássica com tintas feministas e boa dose de virilidade, com sua protagonista durona raptada de um matriarcado utópico ainda criança e lançada à miséria por homens babões, deformados física e moralmente.
Pesa que Miller seja a cabeça por trás da obra original, e que o roteiro deste “Furiosa” estivesse pronto antes de “Estrada da fúria”, ainda que o público só tenha conhecido a personagem por Charlize Theron.
Nem Furiosa, nem o novo vilão de Chris Hemsworth, Dementus, são especialmente ricos. Caricatos a seu jeito, mostram as fragilidades de Miller e do roteirista Nick Lathouris na hora de transformar emoções em palavras, algo que se sente nos “voice-overs” e nos diálogos mais longos.
“Mad Max” sempre se beneficiou da falta de sutileza – bastam o visual e os nomes patéticos de personagens como Rictus Erectus e Scrotus para entender essa expressividade.
Furiosa, em particular, tira sua força do silêncio, raspando todo o cabelo, disfarçada como garoto numa sociedade de brutamontes impiedosos.
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Por outro lado, o que dizer do roteiro da cena em que, em alta velocidade, um caminhão-pipa cromado, recheado de armas e soldados, sofre emboscada de motoqueiros com paraquedas em formato de polvo e ventiladores gigantes nas costas para flanquear o inimigo?
São pelo menos 20 personagens batalhando sem parar apenas ao som do ronco dos motores. Poucos saem vivos da peleja em que uns dirigem e outros se escondem entre pistões enferrujados, tentam consertar o cano de combustível, desarmam dinamites ou alimentam o radiador com xixi antes de rosquear a tampa no formato de caveira.
São cerca de 15 minutos frenéticos mais difíceis de descrever que de apenas contemplar. É um encanto entender todo esse balé com jeitão de videogame. A sensação se repete em cenas como a fuga no primeiro ato e a invasão a uma fábrica de munição no final.
Miller, o maestro
Com a câmera precisa, que sabe conduzir o olho do espectador entre os cortes, Miller rege cada cena como se nos apresentasse um mapa e sua estratégia. Localiza o espectador no cenário e dá tempo para que cada ação seja capturada e decupada, em vez de abusar de cortes rápidos para mascarar defeitos e dar a falsa ideia de velocidade.
Falando em ritmo, o filme tem quase meia hora a mais que “Estrada da fúria” para dar conta do enredo, pavimentado em linha cronológica.
É um tempo bem-vindo sobretudo na primeira metade, antes da entrada de Taylor-Joy em cena. Depois, a figura de Jack, papel de Tom Burke, soldado do tirano Immortan Joe, é o ponto mais frágil da história, dividindo o papel de mentor e par amoroso de Furiosa. A relação de ambos não se desenrola e parece mais uma muleta para o conjunto.
O que se sobressai é o efeito mítico da opereta com coro de “monster trucks”. No curso da vingança, Furiosa crê no futuro encapsulado na semente que ganhou da mãe e protege com unhas e dentes. Já Dementus decai por acreditar nos frutos do ódio. A parada final da saga faz uma ponte com os eventos de “Estrada da fúria” e reforça o tom de lenda.
Assim como a gasolina alimenta os motores, Miller bebe aquilo que há de mais essencial no cinema para acender uma faísca de graça em Hollywood.
“FURIOSA: UMA SAGA MAD MAX”
(EUA/Austrália, 2024). De George Miller. Com Anya Taylor-Joy, Chris Hemsworth e Tom Burke. Estreia nesta quinta (23/5) em salas das redes Cinemark, Cineart, Cinesercla e Cinépolis, além do Centro Cultural Unimed-BH Minas