Jonathan Glazer foca a narrativa na vida cotidiana da família do comandante de Auschwitz, que construiu uma bela casa vizinha ao campo de concentração -  (crédito: DIAMOND FILMS/DIVULGAÇÃO)

Jonathan Glazer foca a narrativa na vida cotidiana da família do comandante de Auschwitz, que construiu uma bela casa vizinha ao campo de concentração

crédito: DIAMOND FILMS/DIVULGAÇÃO

"O horror! O horror!" A frase cunhada por Joseph Conrad em "O coração das trevas" (1902), utilizada desde então em livros, filmes e relatos sobre atrocidades, acompanha o espectador ao longo de toda a duração de "Zona de interesse".

Com estreia nesta quinta-feira (15/2) nos cinemas, o longa-metragem do cineasta britânico Jonathan Glazer, indicado a cinco Oscars (filme, direção, filme internacional, roteiro adaptado e som), é uma das leituras mais inventivas e radicais do Holocausto.

Não se vê nenhuma morte. Não se acompanha nenhum drama de um personagem enviado a um campo de concentração. Mas está tudo lá, na fumaça dos fornos crematórios, nas cinzas que se espalham para a natureza, nos sons dos tiros. Que não nos enganemos. O horror vem de outro lugar, bem ali ao lado. O filme acompanha a vida doméstica dos Höss, a família de Rudolf Höss, o oficial da SS que comandou, de maio de 1940 a novembro de 1943, o campo de Auschwitz.

"Zona de interesse" é uma adaptação livre do romance homônimo do britânico Martin Amis (no Brasil publicado pela Companhia das Letras).

Quando a família Höss – os pais são Rudolf (Christian Friedel) e a mulher Hedwig (Sandra Hüller, quase irreconhecível para quem a acompanhou em "Anatomia de uma queda") – aparece pela primeira vez, o que vemos são alguns adultos e cinco crianças, um bebê incluído, passando uma tarde de verão no campo. Há um rio, muito verde, montanhas ao fundo e brincadeiras inocentes.


Casa com piscina

Este mesmo grupo volta para casa, uma grande estrutura de concreto com um jardim muito bem cuidado. Tem também uma piscina, cascata incluída e tudo. Ao fundo, do outro lado do muro, assistimos, dia e noite, a fumaça saindo dos fornos crematórios.

Na parte interna da residência, tudo muito claro, limpo, com um quarto para os dois meninos mais velhos, outro delicadamente decorado para as duas filhas, e ainda um terceiro para o bebê. O casal Höss divide, em duas camas de solteiro, o maior dos quartos. A vida ali dentro é absolutamente normal para uma família endinheirada. Há jardineiro, babá, cozinheira, arrumadeira. Pai dedicado, Rudolf lê na cama para fazer as filhas dormirem. Leva o mais velho para passear a cavalo.

A banalidade do mal de que tanto falou Hannah Arendt mora ao lado. Hedwig recebe a visita da mãe, impressionada com o quão bem sucedida a filha e sua família estão. Esta mostra, com orgulho, o jardim que cultiva. A mãe comenta, como quem não quer nada, que uma senhora para a qual trabalhou, deve estar bem ali (além-muros). E se lamenta mesmo é pelo destino que tiveram as cortinas da casa da mulher: fizeram um leilão, e ela não conseguiu arrematá-las.

No quarto dos garotos, o mais novo sobe até o beliche do mais velho. Quer saber o que ele está fazendo. Com uma lanterna, o primogênito está mexendo em sua coleção de dentes de ouro. Tais cenas vão se sucedendo, como se a poucos metros da casa não estivesse em curso o maior campo de extermínio nazista. Numa reunião, Rudolf recebe dois engenheiros que lhe explicam como será o novo modelo de fornos. Com algumas melhorias, eles funcionarão 24 horas por dia, aumentando a quantidade de "carga" que será incinerada.

Tela preta e sirenes

Os horrores cotidianos vão se sucedendo como num ciclo. Mas Glazer não entrega nada de mão beijada. Coloca o som também para contar sua própria história. O filme começa com uma tela preta – sem a visão, só acompanhamos as sirenes, que vão surgir em outros momentos da narrativa.

Há ainda sons a distância, seja o de um trem chegando (possivelmente com centenas de judeus, cujas roupas virão para a casa dos Höss), seja de um motor de moto à distância (na vida real, Höss contratou uma pessoa para acelerar um motor para ofuscar os gritos e tiros que vinham de Auschwitz).

Praticamente não há closes dos personagens, com as sequências filmadas em planos mais abertos. O cineasta espalhou pela casa e pelo jardim 10 câmeras fixas, controladas remotamente. Também houve em torno de 30 microfones espalhados. Desta maneira, o elenco pode se mover com mais naturalidade pelo ambiente.

Higienização constante

A higienização é constante no filme. Hedwig manda a empregada limpar o casaco de pele que chegou à casa diretamente do campo para que ela possa usá-lo; Rudolf volta com dois filhos para casa correndo e os coloca no banho para que se limpem da fuligem que estava no lago; as botas sujas do comandante são sempre limpas por um prisioneiro judeu do lado de fora da casa.

Já mais ao final há um corte narrativo. Na Auschwitz atual, assistimos a um grupo de pessoas faxinando o museu que existe no antigo campo. Milhares de sapatos e malas de roupas, à vista de todos, são limpos para que os visitantes possam testemunhar o horror de outrora.

São duas higienizações: a da ficção, que encena a tentativa de apagar os acontecimentos, e a da realidade, para manter sua memória. Entre o real e a fabulação, "Zona de interesse" é talvez o retrato mais impactante que podemos ter hoje do Holocausto.

“ZONA DE INTERESSE”
(Reino Unido/EUA/Polônia, 2023, 105min.). Direção: Jonathan Glazer. Com Christian Friedel e Sandra Hüller). Estreia nesta quinta-feira (15/2), nos cines Ponteio 4 (18h50, 21h05), Premier (14h), Centro Cultural Unimed-BH Minas (Sala 2, 18h25), UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 16h20, 20h30).