Francisco Dornellas e seu filho, Victor Dhornelas, da Trupe Garnizé, são Hamm e Clov, que se encontram fechados num bunker, no texto de Beckett -  (crédito: André Veloso / Divulgação)

Francisco Dornellas e seu filho, Victor Dhornelas, da Trupe Garnizé, são Hamm e Clov, que se encontram fechados num bunker, no texto de Beckett

crédito: André Veloso / Divulgação

Aos 80 anos, Eid Ribeiro resolveu rir do fim do mundo. O diretor e dramaturgo, um dos mais destacados nomes da cena teatral mineira e nacional, revisita a peça "Fim de partida", do "apocalíptico" Samuel Beckett (1906-1989), que já havia encenado na década de 1980. A diferença é que, agora, Eid mergulha no mundo sombrio e angustiante do autor irlandês na companhia de dois palhaços.

A montagem, que estreia nesta quinta-feira (15/2), no CCBB-BH, e cumpre temporada até 18 de março, de segunda a sexta, sempre às 19h, é estrelada por Francisco Dornellas e seu filho, Victor Dhornelas, palhaços integrantes da Trupe Garnizé. Eles dão vida aos personagens de "Fim de partida", Hamm e Clov, que, fechados em um bunker, servem de veículo para Beckett abordar as relações tóxicas, servis e parentais.


Completam o elenco do espetáculo, em participações especiais, João Santos e Marina Viana. Eid conta que resolveu trabalhar com a Trupe Garnizé após assistir, no ano passado, a peça "Ligados em uma nota de sol", que marcou o retorno de Francisco aos palcos, depois de sofrer dois AVCs, que comprometeram sua visão, audição, memória e alguns movimentos.


Acaso e improvisação

Para contornar as dificuldades, Chico, como Eid se refere a ele, conta com recursos tecnológicos e com o auxílio do filho, que o acompanha em cena desde a infância. O diretor observa que essa condição exige que o espetáculo esteja sempre um pouco aberto ao acaso e à improvisação. Ele diz que, às vésperas da estreia, sequer terminou de escrever o segundo ato.

"Chico não decora o texto, mas manipula um tablet. Estamos trabalhando há sete meses e ele é o primeiro que chega ao ensaio, sempre alegre, bem disposto, e a improvisação parte desse ponto. O fato de estar com o filho em cena proporciona uma cumplicidade e uma abertura para o acaso. É um espetáculo que continua em processo, não estou colocando ponto final no trabalho", afirma.

Ele conta que, quando viu "Ligados em uma nota de sol", no Galpão Cine Horto, pensou imediatamente que trabalhar com os Garnizé renderia um belo "Fim de partida", seguindo o modelo que tinha em mente. O diretor pontua que o texto de Beckett propõe uma espécie de meta-teatro, na medida em que joga explicitamente com os elementos que compõem o universo das artes cênicas.


Olhar do palhaço

"Quis fazer uma brincadeira, por isso convidei dois palhaços. O primeiro 'Fim de partida' que fiz, em 1988, foi um Beckett ortodoxo, seguindo a linguagem dele mesmo, e agora eu quis partir para a diversão. Ele tem aquela coisa dramática, apocalíptica, mas aqui é visto pelo olhar do palhaço. Tento criar um distanciamento e me divertir, afinal, o próprio Beckett diz que nada é tão divertido quanto a desgraça", pontua.

Eid observa que o texto não especifica quem são os protagonistas. Ele, no entanto, ressalva que Beckett tinha uma ligação muito forte com os atores cômicos do cinema mudo, o que lhe dá a licença poética para trabalhar com dois palhaços. "Beckett chegou a dirigir um curta com Buster Keaton. Ele se inspirou nas comédias do cinema mudo para criar – não a literatura, mas sim o teatro dele, a mise-en-scène", diz.

Ele ressalta que o "Fim de partida" que leva à cena a partir de amanhã busca provocar uma simbiose entre os personagens da ficção beckettiana e a linguagem da palhaçaria, com duas narrativas que percorrem caminhos paralelos, mas que se identificam em determinados momentos, praticando um jogo de ironia e escárnio, rindo do trágico destino traçado para a humanidade.


CONTEXTO PÓS-GUERRA

É nessa medida que o texto, escrito em meados dos anos 1950, após duas guerras mundiais, sobre os escombros do nazifascismo, reverbera nos dias atuais, de acordo com o diretor. Ele destaca que, na verdade, Beckett reescreveu a peça quatro vezes – foi o texto em que ele mais trabalhou no conjunto de sua obra.

"Isso está posto nos dias de hoje porque o fim da partida é o fim do mundo. O consumismo e toda essa loucura que está acontecendo estão nos levando para o fim do mundo. O que temos em cena são dois caras presos num abrigo e não tem mais vida lá fora. Beckett é um escritor muito à frente de seu tempo. Ele previu o que está acontecendo agora, esse processo de extinção", ressalta.

Eid enxerga o ser humano como uma "entidade suicida". "A gente caminha para o abismo, e acho que já não tem mais como parar. Chegamos num ponto sem volta. 'Fim de partida' é premonitório com relação à nossa tragédia, mas com essa versão eu quis amenizar isso, quis mais é me divertir falando do nosso fim", pontua.


CARREIRA PROFÍCUA

Nascido em Caxambu, em 1943, o dramaturgo, roteirista e diretor teatral já dirigiu e escreveu para coletivos como Grupo Galpão, Grupo Teatro Delle Radici (Suíça), Grupo Trama, Cia. Acômica e Grupo Armatrux. Foi ainda fundador do Grupo Geração, coletivo teatral que atuou na resistência à ditadura militar no Brasil, repórter e colunista de diversos jornais mineiros e fluminenses e curador e diretor de programação do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte.


"FIM DE PARTIDA"
De Samuel Beckett. Direção: Eid Ribeiro. Com Francisco Dornellas, Victor Dhornelas, João Santos e Marina Viana. O espetáculo estreia nesta quinta-feira (15/2) e cumpre temporada até o próximo dia 18 de março, com sessões de sexta a segunda, sempre às 19h, no Teatro 2 do CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários - 31.3431-9400). Ingressos a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), à venda no site do CCBB e na bilheteria do teatro. Duração: 135 minutos, com 10 minutos de intervalo. Classificação indicativa: 16 anos.