A animação exibida em uma sala em Belo Horizonte é baseada em série belga de livros infantis estrelada pelos personagens
 -  (crédito: Mélusine Produções/Divulgação)

A animação exibida em uma sala em Belo Horizonte é baseada em série belga de livros infantis estrelada pelos personagens

crédito: Mélusine Produções/Divulgação

Um filme, várias camadas interpretativas. Assim é a animação francesa “A viagem de Ernesto e Celestine”, de Julien Chheng e Jean-Christophe Roger.

Em cartaz em sessão matutina (10h30) no Centro Cultural Unimed-BH Minas, o longa se inspira na série de livros infantis “Ernest & Célestine”, da escritora e ilustradora belga Gabrielle Vincent (pseudônimo de Monique Martin), para contar as aventuras de dois improváveis amigos: um urso e uma simpática ratinha.

A dupla divide uma casa, vivendo com o minguado dinheiro que ganha como músicos mambembes. Certo dia, preparando-se para tocar, Celestine quebra sem querer o violino de Ernesto. Não se trata de um instrumento qualquer, e sim um “Stradivariurso”, fabricado manualmente pelo luthier Octavius na distante e desconhecida Charabie, terra natal do urso.

Celestine propõe, então, uma viagem à tal cidade para pedir ajuda ao luthier. Ernesto se nega com veemência.

A negativa, no entanto, não desencoraja a ratinha. Pelo contrário. Na surdina, ela pega o “Stradivariurso” de Ernesto, coloca nas costas e parte para Charabie, deixando uma carta de despedida (na verdade, um “até breve”) ao amigo.

Quando Ernesto lê a mensagem, entra em desespero e vai atrás de Celestine, encontrando-a já bem próximo de Charabie. Tendo chegado até ali, diz a ratinha, não podiam mais voltar.

Resignado, Ernesto vai procurar Octavius junto da amiga.


Charabie é uma terra exótica e alegre, diz Ernesto à sua amiga, já confortável com a ideia da viagem. “É o lar dos melhores músicos do planeta”, conta, quando já estão entrando na cidade.

Contudo, a Charabie que eles encontram não tem nada de musical. Placas proibindo instrumentos musicais estão espalhadas pelas ruas da cidade e o maior trabalho da polícia local para manter a ordem pública é espantar, com jatos de água, os passarinhos que voam e cantam livremente.

O sugestivo lema da cidade dá indícios do que se tornou o local: “É assim e não tem outro jeito”.

Sem entender direito o motivo daquela mudança, Ernesto decide dar um pouco de alegria ao local. Tira um acordeon da bolsa e começa a tocar no coreto da praça principal, de onde sai algemado direto para a cadeia.

Lei "Ernestof"

No cárcere, ele descobre que há alguns anos foi decretada uma lei chamada “Ernestof” – a referência explícita ao russo não é casual; desde o fiasco da invasão napoleônica na Rússia, os franceses veem o país euro-asiático como uma espécie de pedra no sapato. Pela nova legislação de Charabie, a música está proibida. A única nota permitida é o “Dó”.

O nome da lei também não é mera casualidade. O líder autoritário da cidade é o pai de Ernesto. E a lei só foi decretada depois que o urso abriu mão da carreira de magistrado para viver de música – é tradição centenária em Charabie os filhos seguirem a mesma profissão do pai, sem direito a reclamar, afinal, “É assim e não tem outro jeito”.

Ernesto, por sua vez, sai da cadeia, alia-se aos rebeldes da “resistência musical” chefiados pelo misterioso Mifasol – uma pequena criatura que infringe a lei, tocando saxofone em locais públicos e tem o rosto coberto por uma máscara – e, sempre acompanhado de Celestine, faz frente ao governo autoritário do pai, promovendo uma verdadeira revolução que começa pelo povo e atinge os poderosos.

Resistência musical

No lugar de armas, a “resistência musical” lança mão de tubas, cornetas, flautas, saxofones e tímpanos. Saem pelas ruas atirando notas proibidas que estimulam os demais moradores da cidade a aderirem ao levante e ferem somente o regime autocrático de Charabie.

É aí que as diferentes camadas interpretativas do filme começam a aparecer.

Investir nos próprios sonhos, conflitos geracionais, relação pai-filho, música e cultura como armas contra regimes autoritários, valor da amizade e defesa da liberdade. “A viagem de Ernesto e Celestine” trata de tudo isso ao mesmo tempo, sem se fazer um filme confuso.

Assim como as obras do escritor alemão Thomas Mann, nas quais cada parágrafo pode ser interpretado de diferentes formas, a animação de Julien Chheng e Jean-Christophe Roger dá ao espectador, em cada cena, diferentes possibilidades de apreensão.

Ao passo que uma restrita leitura dá conta de que a animação se limita a acompanhar as aventuras de dois amigos inseparáveis, uma observação mais atenta permite uma visão mais crítica do filme, associando-o à política ou aos conflitos familiares, que distanciam aqueles que supostamente estariam unidos mais que tudo.

Embora haja diferentes maneiras de encarar o filme, não se pode negar a grande influência do pensamento libertário, fruto do iluminismo – corrente filosófica cujo berço foi a França – na obra, que termina com o grito: “Viva as notas livres”.

“A VIAGEM DE ERNESTO E CELESTINE”
(França, 2022, 80min.) De: Julien Chheng e Jean-Christophe Roger. Classificação: Livre. Em cartaz na sala 1 do Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 10h30.