Nelson Freire se apresenta no Teatro Municipal de São João Del Rey, em 30 de junho de 2012; biografia relaciona os 50 concertos do repertório do pianista
 -  (crédito: Tulio Santos/EM/D.A Press)

Nelson Freire se apresenta no Teatro Municipal de São João Del Rey, em 30 de junho de 2012; biografia relaciona os 50 concertos do repertório do pianista

crédito: Tulio Santos/EM/D.A Press

Pergunte a uma criança de 4 anos o que ela quer de presente. “Partituras!” será a resposta, se essa criança for Nelson Freire (1944-2021). A paixão precoce do pianista por seu instrumento está contada em detalhes na biografia “Nelson Freire - O segredo do piano”, do jornalista francês especializado em música clássica Olivier Bellamy.

A mudança da família de Boa Esperança para o Rio de Janeiro, os anos de formação, os estudos na Europa, a trágica morte dos pais num acidente de ônibus a caminho de Belo Horizonte, o início e o desenvolvimento da carreira. Está tudo no livro, temperado pelos comentários de um autor que não deixa o leitor brasileiro se esquecer de que é um estrangeiro quem escreve essa história.

Ao citar o cartão que Guiomar de Novaes (1895-1979) endereçou ao artista mineiro desejando-lhe “muitas felicidades e uma grande carreira”, Bellamy observa que a felicidade vem antes da carreira e caracteriza a pianista como “muito brasileira” por escolher essa ordem dos termos.

Da mesma forma, ele deixa claro seu espanto com a “curiosa” relação dos brasileiros com a medicina – “Um remédio de nome pouco sonoro ou uma embalagem pouco atraente é considerado ineficaz ou nocivo”.

Porém, a relação de Bellamy com o Brasil é de admiração, o que fica claro em comentários como o de que “o Brasil é muito diferente da Argentina. A gentileza dos brasileiros destoa da aspereza dos argentinos, dos quais se diz serem italianos que falam espanhol e se acham ingleses”.


Revelações íntimas

Embora seja contado com esmero, não é o percurso artístico de Nelson Freire, contudo, o que sobressai no livro de Bellamy. A vida do pianista longe das salas de concerto, seus amores, seus encontros casuais em endereços destinados a isso, seu temperamento dado a irritações desproporcionais diante de frustrações cotidianas, sua adesão ao álcool e sua tendência a ser avaro com pequenos gastos, enfim, tudo o que os admiradores de Nelson Freire nunca souberam a seu respeito está na publicação.

Mais que isso, são descritos em detalhes os dias finais do pianista no Rio de Janeiro, mergulhado em depressão (desde a queda em que fraturou o ombro, em outubro de 2019, e de um segundo acidente durante a pandemia no qual quebrou o pulso), atormentado pela dor, pelo medo do futuro e por pensamentos paranoicos.

De acordo com “Nelson Freire - O segredo do piano”, o artista cometeu suicídio, embora essa palavra não seja usada por Bellamy, por razões que ele explica na entrevista a seguir ao Estado de Minas.

A decisão do autor de revelar segredos que Nelson Freire manteve guardados a sete chaves deverá ter no Brasil um impacto maior do que na França, onde o livro foi lançado no ano passado. O escritor não está alheio a essa possibilidade.

“Uns ficarão chocados e outros, não. Em todo caso, eu assumo. Tenho certeza de que ele não ia gostar e ia mandar retirar. Mas, da mesma forma que no amor é preciso ter respeito, se há mais respeito do que amor, não sei se é um grande amor. Não é preciso fazer sempre o que o outro quer”, afirma.

Concorde-se ou não com a atitude de Bellamy, é certo que o autor se inscreve entre os grandes admiradores de Nelson Freire. Ele evita se denominar como um amigo próximo, pelo receio de parecer “pretensioso”.

“Quando há um polo de atração, é como a corte de Versailles – se o rei te olha, você é importante; se ele não te olha, você está no lixo. Digo que a gente se conhecia e se gostava. Sei que havia jornalistas mais próximos, mas é isso.”

A relação de Bellamy com Nelson Freire, no entanto, ia além da amizade. Nas palavras dele: “Um artista é mais do que simplesmente um amigo, é uma ligação com o divino. Nelson é um dos pianistas que mais ouvi na vida; (o estadunidense) Nicholas Angelich (1970-2022) também. Para mim, esses dois eram ligações com o divino, uma linha direta com Deus. E essas duas coisas me foram cortadas. Tenho a impressão de que o mundo é mais sombrio (desde então); estou mais nas trevas”.

Nelson Freire e o maestro Fabio Mechetti

Nelson Freire, após concerto com a Orquestra FilarmÎnica de Minas Gerais, regida pelo maestro Fabio Mechetti, na Praça do Forum, em Boa Esperança, sua cidade natal, em 1º de agosto de 2015

Rodrigo Clemente/EM/D.A Press

Como surgiu a ideia de escrever a biografia de Nelson Freire?


Imaginei que seria uma bela história a contar. Ele não gostava de dar entrevista, mas a conversação informal com ele era natural. Ele me respondia de forma natural e facilmente. Eu tinha um bom material e como conhecia todos os amigos dele, os principais, e eles falavam francês, era muito prático. Eu tinha essa ideia num canto da cabeça. Mas como sou um pouco preguiçoso e isso não era algo que ele queria (dar entrevistas para uma biografia), deixei para lá. Quando ele morreu, essa ideia me pareceu importante, como uma missão.

O mesmo ocorreu em relação a Martha (Argerich). Foi muito difícil, ela não queria ouvir falar (sobre a biografia que Bellamy escreveu da pianista argentina, “Martha Argerich: L’enfant et les sortilèges”, lançada em 2010). Mas o que você faz: você fica contente de ser admitido na entourage de um ícone, é uma satisfação para o ego ou você tenta fazer (a partir desse acesso) algo criativo e para um público amplo?


Levei oito anos para fazer o livro sobre Martha. No caso de Nelson, foi mais rápido, porque para o editor (francês) era absolutamente necessário que o livro fosse lançado no ano seguinte à sua morte, no primeiro aniversário da morte.

Seus entrevistados para o livro tinham ciência das revelações que o sr. faria sobre a vida privada do pianista? Eles sabiam de sua intenção de revelar ‘o segredo do piano’?

Aqueles que me deram entrevista não perguntaram o que haveria no livro. Certamente você se refere à homossexualidade e às condições de sua morte, os dois templos proibidos que eu profanei. Quem sabia era (o companheiro e assistente de Nelson Freire, João) Bosco, de quem sou mais próximo. Sobre as condições da morte, eu queria que fosse o mais exato possível, mas sem usar…

A palavra.
Sim, porque não é necessário dizer suicídio. Para que haja suicídio é preciso haver uma carta. Nesse caso, é um mistério. Eu tentei me aproximar do mistério. Cada um lê o que quer ou o que está nas entrelinhas, nada é dito explicitamente e nada é escondido. Essa é a possibilidade mais certa, mas não é 100% certa. O fato é que ele queria morrer e que ele morreu.

É difícil para o leitor atravessar a descrição da intensidade do sofrimento que marcou seus dias finais e se torna ainda mais difícil com a inclusão que o sr. fez no final do livro do Questionário Proust respondido por ele em 2000, no qual afrima que gostaria de ter uma morte “em paz, sem sofrimento”.

Eu não consigo ler isso sem lágrimas nos olhos. Nos dias finais, já não era mais possível falar com ele. Ele já tinha se retirado do mundo, por razões, muitas razões, por todas as razões que no livro estão ditas ou esboçadas. É uma tragédia, claro, mas acho que é uma tragédia inscrita desde o começo.

A música salvou a vida dele. O mundo lhe pareceu (um lugar) hostil, como se sua alma não tivesse proteção. Para que sua alma pudesse ser protegida, a única maneira é que ele ecoasse música. Não quer dizer que ele não pudesse ter momentos de alegria, como todo mundo – admirar uma flor, estar em contato com a natureza, trocar um beijo. Mas ele só poderia ter esses momentos se houvesse essa coisa fundamental que era a música. (No final) Era como um passarinho que não podia mais cantar.

No documentário “Nelson Freire” (2003), o diretor João Moreira Salles decidiu que apenas o próprio pianista falaria sobre si. Ele achou que não seria adequado ter outras pessoas falando a respeito de alguém que era a própria imagem do recato. Em seu livro, o sr. fez a escolha oposta. Poderia explicar sua decisão?

Pelo fato de perguntar aos outros, a gente aprende muita coisa. E há coisas que não poderíamos saber de outro modo, porque, às vezes, os outros contam coisas que a própria pessoa esqueceu. Nelson era uma personalidade forte e única musicalmente, um gênio musical. O fato de estar perto de alguém extraordinário nos deixa num estado de consciência mais agudo, como se tivéssemos 100 por certo de abertura ao mundo.

Quando todas as luzes interiores estão acesas, a gente se lembra muito bem. Eu me lembro precisamente do que vivi com ele. Nelson falava de gente que ele tinha encontrado, mas para fazê-lo falar de si mesmo era muito difícil, era indispensável passar por outras pessoas que contassem como ele era. Além disso, um livro é diferente de um filme. Um livro tem que contar, tem que explicar e isso passa mais pelas palavras, pelo relato.

E quanto à sua decisão de abordar abertamente a homossexualidade, um tema sobre o qual ele nunca falou publicamente?
Eu falei com Nelson muito livremente sobre homossexualidade. Não sei com quem mais ele falava (do assunto). Evidentemente não com sua família, nem com jornalistas. Mas esse não era um tema tabu com Martha (Argerich), por exemplo, nem com seus amigos que eram como ele, com quem isso não era um objeto de curiosidade. O que é horrível é se sentir como um objeto de curiosidade.

Sei que vou dizer algo desfavorável a mim, que dá munição para me atacarem, mas, no meu livro sobre Martha, coloquei uma frase que deixava claro que ele era atraído por rapazes. Ele disse: “Não, não, não! Tira isso!”. Enquanto ele era vivo, obviamente era preciso respeitar sua vontade. Mas morto ele não pertence só a ele, mas à história.

Acho que, numa biografia, é obrigatório falar sobre as condições de sua morte, assim como a homossexualidade. Isso é essencial para ir ao mais profundo do seu ser, mesmo que contra a sua vontade. Pode parecer horrível o que eu digo, mas é isso.

Suponho que o sr. tenha tido de lidar com um conflito ético ao tomar a decisão de abordar abertamente aspectos da vida de Nelson Freire que ele fazia questão de manter distantes do conhecimento do público. Gostaria de ouvi-lo mais extensamente sobre como o sr. resolveu esse conflito.

É uma escolha difícil, mas é a obra que comanda, não eu. Se a gente não quer (escrever um livro), a gente não escreve e não há problema. Mas como a gente não é idiota, a gente tenta que (o livro) seja o mais bonito possível, que não tenha a ver com as fofocas, os tabloides, a imprensa marrom, mas que seja algo belo, algo que tenha sentido.

Alguns acham um quadro belo e outros, não. Uns ficarão chocados e outros, não. Em todo caso, eu assumo. Tenho certeza de que ele não ia gostar e ia mandar retirar. Mas, da mesma forma que no amor é preciso ter respeito, se há mais respeito do que amor, não sei se é um grande amor. Não é preciso fazer sempre o que o outro quer. Em todo caso, esse problema se coloca necessariamente e não há resposta (certa).

Sei que seria muito mais tranquilo se eu fizesse a escolha inversa, sobretudo conhecendo a ele e a todos os seus amigos. Sei que corro o risco de ser mal interpretado. Mas não podemos nos censurar demais. Num livro, é preciso não se colocar esse tipo de questão.

Se vamos um pouco longe demais, há amigos que dizem que: ‘No seu lugar, eu não diria isso’. É importante ter gente de confiança e que te protege de dizer grandes besteiras, de ser ridículo ou horrível ou vulgar. Isso foi lido, relido, mas não me coloquei essa questão. Depois aceitei. Não queria que as pessoas ficassem chocadas, mas não posso impedir que as pessoas fiquem tristes lendo sobre sua morte. Há coisas que não posso administrar.

O que Martha Argerich comentou? Ela ficou chateada?

Ela não me disse nada, como é sempre o caso com ela. Ela fala muita coisa, mas esse tipo de coisa ela não fala. Não me disse nada nem agradável nem desagradável. Martha afirma que não leu biografia que escrevi sobre ela, algo de que até duvido um pouco. Mas no caso do livro sobre Nelson, acho que seria muito sofrido para ela. Ela deve ter começado, parado e dito que leria mais tarde. Ela deve ter ouvido o que os outros disseram sobre o livro, alguns falando bem; outros, menos.

Nos agradecimentos a quem lhe deu entrevista o sr. menciona Bosco, o assistente e companheiro que ele conheceu em 1989. Mas não menciona Miguel, o outro companheiro, que ele conheceu em 1995, segundo seu relato. Ele se recusou a falar com o sr. para o livro?

Ele me disse que estava de acordo, mas era difícil. Não voltei ao Brasil depois da morte de Nelson. Se eu tivesse voltado... Ao telefone seria complicado. Ele não fala francês, eu não falo português. E também preferi não entrevistá-lo porque com isso eu entraria em alguma coisa diferente. Acho que há coisas que não posso abordar, há coisas muito dolorosas e que envolvem culpabilidade também. Eu não queria me aproximar disso, porque, se podemos trair o testamento dos que estão mortos, é mais difícil fazer sofrer os vivos.

Como o sr. recebeu a notícia da morte de Nelson Freire, ocorrida em 1º de novembro de 2021?
Eu estava no meu escritório. O telefone toca. É Andre Furno, organizador da série Piano 4 Étoiles em Paris, que organizava muitos concertos de Nelson na cidade. Ele me disse que Martha havia telefonado para contar a notícia. Eu gritei. Foi um grito que queria dizer que era uma coisa horrível, mas previsível, mas que não podíamos imaginar, tudo muito misturado. Não posso dizer mais que isso. 

 

“NELSON FREIRE: O SEGREDO DO PIANO”
• Olivier Bellamy
• Tradução: Julia da Rosa Simões
• DBA Literatura (232 págs.)
• R$ 74,90 e R$ 52,90 (e-book)