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Em "Sou amor", Felipe Oliveira dá vida ao protagonista Robson, jovem que enfrenta preconceito e discriminação ao assumir a sua sexualidade

crédito: Lucas Pinheiro/Divulgação

Uma das cenas mais emblemáticas do longa “Sou amor”, dos mineiros André Amparo e Cris Azzi, é quando Robson (personagem de Felipe Oliveira), ao decidir assumir sua transexualidade depois de muito sofrer assédios e agressões, arranca a casca da pintura da parede da casa onde mora.

 

É um ponto de virada do filme, uma representação da atitude que o protagonista terá dali pra frente: a de remover todos os disfarces que encobrem sua sexualidade, deixando em evidência a real estrutura de seu ser, por mais que isso cause incômodo a quem olhe, tal qual uma parede de reboco, sem tintas. Sem fingimentos.

 

Produzido e exibido como série na Rede Minas, em 2018, em única temporada de 13 episódios, “Sou amor” virou filme neste 2023. E é o representante do Brasil na mostra competitiva Ibero-americana de longa-metragem do 33º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema, concorrendo com mais outros cinco filmes. O festival começou ontem (25/11) e segue até sexta-feira (1º/12), com exibições, em Fortaleza, de produções de países latino-americanos, Espanha e Portugal.

 

 

 

MULHER TRANS E PRETA

 

“Sou amor” acompanha a descoberta de Robson como mulher trans e seu desabrochar, que ocorre em meio a todos os dramas e tragédias que atingem esse grupo de pessoas no país que mais mata travestis e transexuais. A primeira delas, no entanto, se dá dentro da própria casa, no seio familiar.

 

Quando descobre que o filho anda pela pequena Luisburgo, no interior mineiro, “maquiado e vestido de mulher”, o pai de Robson lhe dá uma surra e o manda, junto do irmão Marcelo (jovem de 15 anos completamente homofóbico, interpretado com maestria por Juan Queiroz), morar na casa da avó (personagem de Rejane Faria), em Belo Horizonte. A mudança forçada não agrada o caçula, que, em retaliação, passa a tratar Robson de maneira mais hostil, esquecendo, em certos momentos, dos laços sanguíneos que os une por vergonha de assumir o irmão.

 

Na capital mineira, Robson encontra sua turma, os esquisitões do colégio. Pessoas diferentes, que, assim como ele, não são populares e, vez e sempre, são alvo de bullying. Mas, nem o conforto dos amigos, sobretudo de Sara (interpretada com primor pela jovem Eduarda Fernandes), deixa-o imune ao assédio, agressões e constrangimentos, vindos, inclusive, de gente que, assim como ele, sofre todos os dias o mesmo tipo de discriminação.

 

É impactante, por exemplo, a cena em que um jovem affair do protagonista, depois de ter trocado beijos com ele à revelia do olhar alheio, o rechaça com comentários homofóbicos quando estão perto de outras pessoas.

 

“Robson representa uma boa parte da população brasileira”, ressalta o diretor Cris Azzi. “É uma pessoa preta, com essa fluidez de gênero, vindo de uma família tradicional. Mas, basicamente, é simplesmente uma pessoa querendo ser o que ela é ou o que ela está descobrindo ser”, acrescenta.

 

LIBERDADE NO ÓDIO

“Eu acho que o Robson é um cara livre sabe?”, complementa André Amparo, que também assina a direção. “Ele não é um cara gay, não é uma pessoa trans ou nada. É um cara livre que tá descobrindo a sexualidade no momento de vida em que ele está tendo contato com muitas coisas ao mesmo tempo.”

 

Contudo, por causa dessa descoberta, Robson experimenta seu calvário, seja na escola, nas ruas ou em casa (mesmo que a avó dê apoio, os ataques do irmão abalam o protagonista). No entanto, o filme jamais mostra o jovem como um coitado, que aos outros pede pena.

 

“O Robson não vai abaixar a cabeça. Ele vem de uma cidade do interior, onde os olhos da sociedade estão atentos a qualquer detalhe, cai numa cidade grande e aí vai encontrar tudo muito potencializado, seja o afeto a partir da avó e dos seus pares, como também o ódio, violência e intolerância numa proporção maior”, pondera Azzi.

 

“Acho que, resumidamente, a mensagem do filme é: o mundo é horrível”, brinca o diretor. “Mas, ao mesmo tempo, acho que é também sobre saber pisar e olhar para frente, mesmo com o mundo horrível à nossa volta”.

 

“Sou amor” é um filme denso, profundo e sensível. Em muitos momentos, ações, gestos e um simples olhar de um dos personagens diz muito mais que um diálogo, mérito do elenco escolhido pelos diretores por meio de testes.“A gente não conhecia os atores e nos surpreendemos. Com o tempo, viramos uma família”, conclui Azzi.

 

83 FILMES NA PROGRAMAÇÃO

 

Com programação gratuita na capital cearense, o Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema conta com três mostras competitivas (“Ibero-americana”, “curta-metragem” e “olhar do Ceará”) e quatro mostras especiais ("A cinemateca brasileira", "Canal Brasil 25 anos" Vitrine LGBTQIA+" e "Mostras sociais"). Ao todo, serão exibidos 83 filmes.

 

Na mostra, Ibero-americana, a principal do festival, além de “Sou amor”, dos mineiros André Amparo e Cris Azzi, concorrem seis produções de 10 países latino-americanos, além de Espanha e Portugal. A programação conta ainda com debates, exibições especiais e homenagens. Neste ano, os laureados com o tradicional Troféu Eusélio Oliveira são Ailton Graça, Bete Jaguaribe, George Moura, Josafá Duarte e Verônica Guedes.

 

“SOU AMOR”
(Brasil, 2023, 110min, de André Amparo e Cris Azzi, com Felipe Oliveira, Juan Queiroz, Rejane Faria e Eduarda Fernandes. Classificação: 14 anos). Não há previsão de estreia nos cinemas.