Juraciara Vieira Cardoso
Professora da UFMG, graduada em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutora em Filosofia do Direito
VITALidade
O poder travestido de fé
Quando isso ocorre, o sagrado cede lugar à conveniência e o Evangelho à autopromoção
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20/10/2025 04:00
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O Brasil assiste a um vertiginoso aumento no número de cristãos, especialmente de vertentes neopentecostais, o que é muito bem-vindo, pois, além da propagação da fé cristã, o trabalho social realizado por esse grupo, especialmente junto a detentos, é notável. O problema é que, ao lado desse incremento, houve também um fortalecimento do discurso religioso no campo político, com alguns, inclusive, se autoproclamando enviados de Deus. A evangelização é legítima e deve ser incentivada; o que não parece legítimo é o uso instrumental da fé por meio de líderes políticos e religiosos, que transformam a promessa espiritual em um mecanismo de controle e submissão política.
Há algumas semanas, li um artigo intrigante do pastor e jurista Martorelli Dantas, intitulado "O populismo religioso e a quixotesca batalha da Câmara de Vereadores do Recife", no qual o autor reflete sobre o Dia da Cristofobia, criado por meio de lei de autoria daquela Casa Legislativa em agosto de 2025. Segundo ele, a razão apresentada para a promulgação da norma seria a de valorizar e divulgar Jesus, reafirmando a importância da fé cristã na vida pública e privada dos cidadãos.
O autor chama de quixotesca a batalha da Câmara dos Vereadores de Recife, pois, em sua visão, não há sinais de cristofobia em Recife. Para ele, trata-se de uma batalha irreal - como a de Dom Quixote contra os moinhos de vento - que não busca responder a problemas concretos, mas sim mobilizar símbolos religiosos para fins políticos. Segundo Martorelli, esse uso político da fé é uma espécie de populismo religioso, com a instrumentalização da fé e da moral tradicional para conquistar apoio popular, notadamente por meio de leis do Estado.
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O mais genial do artigo, na minha opinião, foi a ponte que o autor fez de sua análise com uma passagem muito famosa dos Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoievski, chamada O Grande Inquisidor. Na passagem, Cristo volta à Terra, propaga sua Palavra, cura doentes e realiza milagres, mas é preso pelo Grande Inquisidor sob a acusação de que, com sua mensagem de amor e perdão, Ele estaria subvertendo a ordem social, que já tinha as convenções e exclusões assentadas e aceitas por todos. O Inquisidor, um velho Cardeal espanhol, membro da Igreja Católica, repreende Jesus e afirma que o povo só precisa mesmo de pão, segurança e alguém que lhe diga o que é certo, e não de livre-arbítrio, pois nem saberiam o que fazer com ele. Segundo o Inquisidor, a liberdade é um fardo muito grande para o povo suportar e a igreja, para proteger as pessoas, tomou para si a tarefa de governar em nome de Deus.
O Inquisidor é a típica figura que se apresenta quando a fé se torna acessória em relação ao poder. Quando a mensagem do Evangelho é substituída pelo interesse político, onde importa mais a manutenção das estruturas que garantem influência e domínio do que Deus. Nesse desejo de poder, travestido de fé, o sagrado é colocado em segundo plano em nome da manutenção do status quo. Assim, o discurso religioso deixa de ser um convite à reflexão e à transcendência para se tornar uma ferramenta de legitimação de projetos de poder que soariam como heresias às sagradas palavras do Evangelho.
Nesses tempos, em que a fé volta ao centro da vida pública e é manipulada como instrumento de persuasão, precisamos ter em mente que a verdadeira religiosidade não precisa de mediações políticas. A fé que se transforma em poder deixa de ser fé para se tornar estratégia e quando isso ocorre, o sagrado cede lugar à conveniência, e o Evangelho à autopromoção.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
