Copo bonito não faz verão
Em tempos de drinks feitos para a câmera, revisitar um clássico é quase um ato de resistência
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Seguindo a última coluna, além das avaliações, vivemos um momento em que as redes sociais são a prioridade, às vezes mais do que a qualidade, a técnica e, principalmente, o sabor. O drink deixou de ser apenas uma experiência gustativa para virar cenário. O balcão se tornou palco de stories e a coquetelaria, coadjuvante da estética.
Não é raro nos depararmos com fotos de copos maravilhosos, cheios de filtro, ângulos estudados e técnicas de edição. Drinks que parecem obras de arte até que chegam à boca. Aí vem o choque: técnica errante, misturas desproporcionais, excesso de dulçor. Um espetáculo para os olhos, mas um tropeço para o paladar.
Quando abrimos o bar Palito, a proposta foi justamente revisitar os clássicos sem cair na armadilha do invencionismo vazio. Não se tratava de negar a criatividade, mas de lembrar que, antes de inventar, é preciso dominar. O menos é mais. Um bom Daiquiri não precisa de fumaça nem de glitter para brilhar. Copo bonito não faz verão, como diz o ditado adaptado.
O bartender Thiago Ceccoti me enviou recentemente uma frase do escritor Robert Simons que se encaixa perfeitamente: “A ressurreição do clássico não é nostalgia, é uma reclamação da qualidade.” Em tempos de drinks feitos para a câmera, revisitar um clássico é quase um ato de resistência.
A reflexão que fica é simples: quando a estética vira objetivo final, o equilíbrio se perde. A aparência deve ser parte da experiência, nunca o todo. Afinal, não é o gelo translúcido ou a taça exótica que sustentam um coquetel. É a proporção, o frescor, a escolha correta do ingrediente, o ponto da diluição. Tudo o que não cabe em um filtro do Instagram.
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E, ainda assim, a lógica do algoritmo empurra bartenders e bares a investirem mais em estética do que em técnica. Drinks “instagramáveis” rendem likes, e likes viram público. O problema é que público atraído pela foto nem sempre volta pelo sabor. O copo rende uma postagem, mas não rende fidelidade. E aqui entra o paradoxo: a obsessão pelo visual imediato pode ser justamente o que esvazia o movimento no longo prazo.
Isso explica porque tantos bares apostam em drinks cenográficos, mas poucos conseguem criar coquetéis memoráveis. A memória gustativa não cabe em feed. O cliente até esquece a decoração da taça, mas jamais esquece um Martini bem feito ou um malfeito. O primeiro fideliza, o segundo expulsa.
Há também um aspecto cruel: nas redes sociais, a imagem é democrática, qualquer um pode parecer profissional com um bom filtro. Mas o sabor é impiedoso: ele não perdoa amadores. E o cliente, que chegou pelo Instagram, pode sair com a sensação de engano como quem pede um prato lindo e descobre que só havia maquiagem no empratamento.
No fim das contas, a estética não deve ser descartada. Um coquetel é também visual e parte da experiência está em receber algo bonito. Mas transformar o copo em mero adereço fotográfico é reduzir a coquetelaria a adereço de mesa. E isso, convenhamos, é um desserviço tanto para quem bebe quanto para quem serve.
A pergunta que deixo é: queremos ser lembrados pelo copo ou pelo conteúdo? O Instagram pode até ditar modas, mas é no copo que se decide o legado. E nenhum filtro corrige a falta de equilíbrio.
Porque, sejamos francos, like não refresca, curtida não equilibra acidez e comentário não salva um drink doce demais. Foto por foto, a inteligência artificial (IA) gera ótimas, um drink não. No fim, o que fica é a experiência líquida. E, gostem ou não os algoritmos, sabor não se posta.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.