Parte da Jerusalém antiga, em Israel -  (crédito: Bukvoed/wikimedia commons)

Parte da Jerusalém antiga, em Israel

crédito: Bukvoed/wikimedia commons

A história da humanidade não é uma linha, mas um feixe de linhas interligadas, conectadas por múltiplos, infinitos pontos cada uma. Acontecimentos numa linha reverberam nas demais e, de alguma forma, definem o tempo e influenciam outras histórias, outras culturas e outros lugares.

Somos, portanto, não apenas habitantes de uma mesma nave-mãe, mas do mesmo feixe de acontecimentos históricos, com aspectos culturais intercambiados, cedidos, recebidos, reprocessados e redistribuídos.

Duas pessoas de locais muito distantes podem parecer diferentes num primeiro momento, mas um olhar mais detalhado para as outras localidades existentes entre esses pontos muito distantes vai revelar matizes que compõem uma espécie de degradê que explicam (ou anulam) as diferenças físicas aparentes.

O mesmo vale para as culturas, e faz todo o sentido: a não ser que o ser humano fosse imóvel como uma estátua, as culturas originais jamais se manteriam estanques e intactas, sem se misturar entre si (apenas países totalmente fechados, regidos pela força e ilhados do mundo, conseguem manter sua própria história "preservada" de "interferências" externas).

Mas, se as culturas e as diferenças vão se intercambiando com o tempo, as cidades parecem manter a essência intacta até o século XX, variando mais em escala, tamanho de sua população, infraestrutura, adequação ao clima e particularidades culturais e religiosas locais, do que na forma de organização.

De uma forma geral, se originam a partir das instituições de poder (governo e religião) local, compactas, quase sempre muradas até o século XIX, quando vem a revolução industrial e uma gigantesca necessidade de expansão em curto espaço de tempo (nessa época, a tecnologia de guerra já tinha tornado os muros desimportantes, porque ineficientes).

No século XX, novas ideias de como pensar a cidade ganharam corpo em vários locais do planeta, notadamente nos menos desenvolvidos (por alguma razão, a parte pobre e subdesenvolvida do planeta é sempre a escolhida para testes de toda a sorte, de novos formatos para a cidade a remédios, de novos armamentos e pesticidas).

Mas, ao longo de séculos e de experiências trocadas, novas ideias e muitas guerras, uma cidade permaneceu praticamente intocada em seu desenho original (e funcionamento) pelos últimos dois mil anos: a Cidade Velha de Jerusalém, um território de aproximadamente um quilômetro quadrado, densamente povoado, com cerca de 36 mil habitantes de diferente etnias, culturas e as 3 principais religiões (monoteístas) do planeta (judaica, cristã/cristã ortodoxa e islamismo).

Está tudo lá, incluindo as centralidades, os largos e praças em torno dos quais os templos religiosos e edifícios institucionais, sistema de adução de água, redes de drenagem e esgoto, caminhos em diversos níveis, mercados e comércio de rua, e muitas moradias, empilhadas em 2, 3 ou 4 níveis, formando outras praças, acessos públicos e privativos, numa trama intensa, onde nenhum metro quadrado é desperdiçado.

O apreço pela densidade vem de uma obviedade: os largos e praças no entorno dos quais os templos religiosos e edifícios institucionais, o comércio e os serviços, precisam estar ao alcance de todos, a pé. Aquilo que vem de fora precisa ser rapidamente distribuído e alcançar todos os pontos da cidade. O custo de construção da infraestrutura é tão elevado que precisa reunir o máximo de beneficiários na menor geografia possível, e construir uma nova moradia encostada na que já existe otimiza escadas, fundações, estrutura e… paredes.

Para além da relevância e do significado religioso, a Cidade Velha de Jerusalém serve como um monumento vivo da engenhosidade humana, numa época (e num local) onde os recursos eram mais do que escassos, de difícil obtenção (exceto o belíssimo calcário, que dá ao conjunto uma uniformidade creme durante o dia, dourada ao pôr do sol, e branca durante a noite).

A inteligência e o conhecimento ali reunidos vem não de possibilidades infinitas e de grandes sonhadores, mas do exato oposto, a escassez, da falta de alternativa, da necessidade, da premência. Quando não há alternativas, não há disrupção, mas a consolidação daquilo que já é conhecido, e que já funciona.
Não há alternativa, a não ser aplicar o conhecimento vernacular acumulado. As inovações são sempre testadas em pequena escala antes de implementadas. Afinal, na escassez, ninguém pode arriscar colocar todos os ovos numa nova cesta ainda não testada.

Mas, por alguma razão, Le Corbusier e sua "ville radieuse" fizeram um imenso sucesso nas rodas mais moderninhas, dentre os acadêmicos mais "up to date" e políticos com um "olhar para o futuro". A Carta de Atenas, publicada no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado em Atenas em 1933, torna-se então o guia para a construção de novas cidades, prontamente abraçada por regimes menos democráticos, a maior parte deles socialista.

Não deu certo, claro, e já em 1954, no encontro do CIAM realizado em Aix-en-Provence, os ideais utópicos começam a ser questionados e postos de lado, até a sua extinção em 1959. Para o Brasil, já era tarde e Brasília já estava "em ordem de marcha", materializando a negação de 3 mil anos de conhecimento aprimorado sobre construção de cidades, meio como se fosse uma criança mimada que escolhe agir de forma contrária às decisões dos adultos.

Se os adultos querem densidade, nós queremos moradias unifamiliares; se os adultos querem densidade e infraestrutura concentrada, queremos espalhamento e muitas avenidas; se querem uso misto, moradias, comércio e serviço juntos, queremos setorização e proibição de usos mistos nos bairros; se os adultos gostam de metrô, preferimos carros.

O Brasil não apenas se dispôs a colocar em prática (Brasília) uma ideia que já tinha feito água no mundo civilizado ("Ville Radieuse"), quanto internalizou seus cânones e pulverizou as ideias de desadensamento e espalhamento por todas as grande cidades brasileiras (esse "pó de pirlimpimpim" caiu sobre Belo Horizonte em 1976, verdadeiro "annus horribilis" para a nossa metrópole).

Olhando para trás, fosse o Brasil (nas décadas de 50, 60 e 70) fechado para o mundo e para as informações como é hoje a Coreia do Norte, é certo que as nossas metrópoles fossem interessantes e utilizadas como as cidades europeias, que tiveram a inteligência de fugir dessa modinha romântica.

Só que, com exceção dos EUA, país nenhum conseguiu superar suas dificuldades econômicas e educacionais tendo como plataforma cidades espalhadas, carentes (ou desprovidas) de infraestrutura, carentes (ou desprovidas) de transporte público de massa por trilhos, carentes (ou desprovidas) de redes de coleta e tratamento de esgoto, onde a massa de trabalhadores mora muitíssimo longe, muitas vezes a mais de 2 horas dos empregos (por transporte público de baixíssima qualidade).

Não é apenas a história do mundo que pode ser compreendida como se fossem feixes de linhas entrecruzadas. Assim são o desenvolvimento social, econômico e educacional de um país, e de uma população.

Não é possível construir crescimento sustentado sobre plataformas defeituosas, como são as nossas cidades. Não faz sentido negar o conhecimento sobre cidades acumulado nesses 3 mil anos, não importando se estamos falando de Paris ou da Cidade Velha de Jerusalém, de Lisboa ou Tóquio.
Não faz sentido olhar para as cidades impregnadas pelos conceitos de "Ville Radieuse" nos últimos 50 anos e não compreender que, nesse buraco que está sendo cavado, não há tesouro algum lá no fundo.

Apenas um buraco, escuro, e fundo, muito fundo.

Desejo a todos um 2024 cheio de escadas que nos tirem desses buracos.