Cidade de Belo Horizonte -  (crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Cidade de Belo Horizonte

crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press

Belo Horizonte foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897. Dizem que foi inspirada em Paris, a "cidade-luz". Inspiração é uma coisa interessante, porque parece falar de uma referência, de familiaridade e de proximidade, mas fala mesmo é de expectativa e de desejo.

Uma pintura inspirada num quadro de um grande mestre não torna essa pintura algo equivalente. Na verdade, fala mais da distância entre inspiração e realização, ou entre expectativa e resultado.

Mostra que, entre o desejo e um resultado extraordinário, a visão e o talento é que fazem a diferença. É como um abismo estreito, mas profundo: o outro lado está logo ali, à vista, mas impossível de ser transposto por quem não tem o ferramental necessário.

E a distância entre a nossa BH - com seus 126 anos - e Paris, é, a cada ano, maior e mais evidente. Nem chega a ser um abismo; é mais um universo paralelo.

Ao contrário de cidades mais antigas, surgidas a partir de vilarejos que cresceram, a nossa foi criada do nada. Quer dizer, por "nada", estamos falando de um arraial que devia ser muito pouco importante a ponto de ter sido - basicamente - ignorado, deixando pouquíssimas marcas e registros no desenho da nova cidade.

Porque a "modernidade", quando vira bandeira ou "movimento", é mais ou menos assim: chega contradizendo tudo, desdenhando o jeito com que as coisas eram feitas até ali e propondo começar de novo. A "modernidade" é disruptiva e revolucionária, e normalmente vem acompanhada por uma série de "estudos" e "teorias" que informam como todo mundo irá, com certeza, se comportar dali em diante.

Se for pensar bem, as revoluções têm mais pontos em comum com a fé cega do extremismo religioso do que com a ciência propriamente dita, na medida em que costumam descartar tudo o que funcionava até ali e, ao invés de propor evoluções incrementais e ajustes do que já funcionava, vem logo propondo rasgar o conhecimento anterior e começar tudo de novo, com uma visão inédita, um jeito de morar inovador, uma cidade que, miraculosamente, mudará a vida de todos, para melhor.

Mas, para infelicidade dos revolucionários e dos amantes do planejamento central, o ser humano raramente se comporta como previsto nos modelos matemáticos e econométricos e, não por acaso, a maior parte das teorias naufragam no - clássico - choque entre pressupostos e a realidade.

Isso vale, igualmente, para a forma como as cidades se desenvolvem de fato, em oposição a como deveriam se desenvolver nos planos urbanísticos revolucionários. A Brasília que ignorou o candango e queria ser limpinha e sem interferências na paisagem, apenas o plano piloto, já tinha a maior parte de sua população morando fora do plano piloto na inauguração da cidade.

Belo Horizonte não foi diferente, e ignorou as zonas suburbanas desde a sua inauguração, espalhando-se desnecessariamente em zonas sem planejamento, mal-servidas por infraestrutura e transporte público, e com baixíssima densidade. Deu no que deu, para surpresa de zero pessoa com conhecimento básico de história e de urbanismo.

Ainda assim (ou apesar disso), até a década de 1960, a zona central da cidade tinha boa infraestrutura, um sistema de bondes elétricos com dezenas de quilômetros de trilhos (que chegava à Pampulha), e bastante gente morando no Centro. O resultado era o esperado: vitalidade no comércio, serviços amplos, muita segurança e as pessoas morando pertinho do trabalho e do lazer. Funcionava, e funcionava bem.
Mas só até 1976.

Corta para a Câmara de Vereadores e o evento para a entrega do Grande Colar do Mérito Legislativo 2023, honraria que homenageia pessoas e entidades com relevantes serviços prestados à nossa cidade. Dentre os homenageados, um Arquiteto e Urbanista merecidamente reconhecido e homenageado, pelo recente sucesso que é a revitalização da região central do Rio, com o retorno de moradores e a requalificação de prédios antigos, a construção de novos e o resgate da região, que deve se tornar mais viva e mais segura.

Melhor, vai permitir que pessoas de todos os extratos sociais morem pertinho dos melhores empregos e de tudo de bom que uma metrópole tem a oferecer. Inclusão social na veia, confirmando que o poder público, sem a iniciativa privada, não tem como realizar a façanha (não importando a quantidade de dinheiro despejado).

Washington Fajardo, carioca nascido em Minas, tem nos brindado ao longo deste último ano com o conhecimento aplicado no caminho bem-sucedido que o Rio trilhou para, quem sabe, fazermos igual em BH, e por isso foi um dos homenageados.

Mas, a despeito das informações disponíveis sobre o sucesso do Rio, os nossos atores políticos parecem buscar um caminho diferente. Talvez a visão local seja outra, vai saber, mas ignorar os programas que já demonstram excelentes resultados para insistir numa legislação focada exclusivamente na produção de habitação popular não parece compatível com as evidências atuais. Nem as evidências brasileiras, nem as latino-americanas, nem as europeias, porque a vitalidade depende de densidade (gente morando), mas que uma parcela desses moradores tenham poder aquisitivo para consumir e estimular o comércio e os serviços locais.

Sem comércio e serviços abundantes e vitalizados, não há segurança pública, não há arrecadação de impostos, não há sustentabilidade.

Corta de volta para 1976 e, 79 anos após a inauguração da Nova Capital, o poder público promove uma revolução silenciosa na legislação e rasga quase oito décadas de evolução urbana, alterando a legislação que trata dos edifícios de forma radical, com claro propósito de espalhamento e desadensamento. As consequências, todas mais que previsíveis, foram… espalhamento e desadensamento.

Mas não só. Vieram também o encarecimento dos imóveis (pela redução contínua dos potenciais construtivos e pela introdução dos afastamentos frontal e laterais obrigatórios), o aumento do custo de infraestrutura (já que menos pessoas moram em cada quarteirão), e aumento gigante do gasto municipal com transporte público (quanto mais gente mora mais longe, mais transporte público é necessário).

Nem precisava, mas como o tema hoje é aniversário da nossa "cidade-luz" (porque inspirada em Paris, dizem), vale lembrar a quantidade de viadutos desfigurando e deteriorando a cidade, as trincheiras que estragam bairros, a quantidade de carros e ônibus que precisam circular, os engarrafamentos sem fim, o asfalto roubando metros preciosos dos passeios e praças.

Vale lembrar ainda a quantidade de quarteirões totalmente murados, escondendo os poucos prédios que a legislação permitiu construir, cegos para as ruas, entregando os passeios, os quarteirões e os bairros à sujeira, ao descaso, aos moradores de rua e aos ladrões.

Isso é o que foi feito mas, muitas vezes, grita ainda mais alto aquilo que não foi feito, como, por exemplo, o metrô que não temos, as praças que quase não temos, a densidade populacional que não temos, a segurança pública que não temos, a limpeza que não temos, as calçadas transitáveis que não temos.
A nossa "cidade-luz" olha para Paris, e não percebe o abismo sob seus pés; não compreende que faz de Paris, Paris, porque faz tudo - literalmente - ao contrário.

Em Paris, os prédios ocupam o terreno todinho; aqui não. Em Paris, construir o máximo de apartamentos por prédio, mesmo que imperfeito, é uma obrigação; aqui não. Em Paris, há uma profusão de praças e áreas verdes, lindamente cuidadas pela prefeitura; aqui não. Em Paris, há um sistema de metrô que, em conjunto com a rede de ônibus, permite que 75% de sua população viva sem carro; aqui não. Em Paris, nem todo mundo trabalha a 15 minutos a pé de onde mora, mas uma boa parte mora a 30 minutos a pé, ou 20 de metrô; aqui não.

Em Paris, o sistema de transporte público vende um passe mensal (com viagens ilimitadas) que custa 7% do salário mínimo; aqui não. Em Paris, ninguém rasga o conhecimento urbano de 20, 50 ou 100 anos, e o aprimoramento é um caminho incremental, e contínuo; aqui não. Em Paris, viadutos e trincheiras são sempre os últimos recursos da engenharia de tráfego; aqui não.

Eu poderia continuar o resto do ano descrevendo o abismo entre a inspiração parisiense, Belo Horizonte e a Paris real, mas termino declarando o meu amor por BH (mesmo por essa BH atual), lembrando que há conhecimento disponível e mais do testado, no Brasil e em todo o mundo, que validam as cidades compactas, os prédios sem afastamentos, a alta densidade e, recentemente, estratégias de revitalização de áreas centrais degradadas.

Basta aproveitar.