A filosofia é enxerida, eu sei. Desde seu surgimento, ela tem a mania de meter o bedelho onde não é chamada. É sua vocação: construir dilemas, escandir problemas, suscitar dúvidas. A Coruja de Minerva alça voo ao entardecer, quando tudo se acalma, quando todos acreditam que não há nada para fazer e que o dia acabou. Lá vem ela, a vontade de saber, enxergando quando o escuro é mais forte.

Na última semana, vimos Michelle Bolsonaro cometer um lapso de postagem, como diriam os nativos da revolução treconológica. Trocando a palavra “força” por “forca”, alterou o sentido da frase, mudando substancialmente a mensagem que gostaria de enviar. Mero descuido? Força do inconsciente? Aceleração para engajamento? Não sabemos. Mas, em tempos de digitalização política, ela abriu — sem querer querendo — a Caixa de Pandora dos territórios tecnofeudais.

Suscitou – agora sem querer mesmo! - um problema filosófico antigo, mas devastador em suas consequências: existem mais palavras ou mais coisas no mundo? Nomeamos porque as coisas existem ou as coisas passam a existir porque as nomeamos? Se faltasse a palavra “forca”, a ideia estaria ausente do mundo — ou apenas aguardando sua vez de ser dita? Acreditar que as palavras são simples etiquetas é um conforto metafísico perigoso.

As palavras não apenas descrevem a realidade; muitas vezes a inauguram, a autorizam, a legitimam. Quando uma palavra aparece onde supostamente não deveria, o escândalo não está no erro ortográfico, mas na suspeita de que a coisa sempre esteve ali, à espera de um vocabulário que lhe desse cidadania. Talvez o mundo não esteja repleto demais de coisas, mas pobre de palavras — ou, o que é ainda mais inquietante, talvez tenhamos exatamente as palavras que merecemos.

Michelle é um exemplo de como a linguagem é um dos principais problemas filosóficos de Platão a Wittgenstein, passando por Nietzsche e Freud. A linguagem é o instrumento que nos humaniza. Como seres falantes, somos atravessados por esse universo simbólico que nos faz existir como seres de cultura, uma espécie de “segunda natureza” que nos permite conviver, viver, pensar e dizer.

Antes de falar as coisas, somos falados. Nem o nosso nome é “nosso” de verdade. Ele nasce antes de nós e nos é dado por outros seres falantes que irão descrevendo coisas, sentimentos e pessoas ao nosso redor. Como vamos lidar com isso? Aí é da história de cada um. Cada pessoa irá, ao seu modo, narrar seu ato de existir.

É por isso que errar uma palavra nunca é apenas “errar uma palavra”. A língua não escorrega sozinha; ela tropeça carregando mundos. Quando Michelle escreve “forca”, o corretor automático pode até pedir desculpas, mas o inconsciente não costuma fazer isso. Ele não conhece a função “editar”. Apenas publica. O lapso surge como um método rude, sem polimento, mas extremamente eficiente. Ele diz aquilo que a boa educação, o marketing político e a assessoria de imprensa suaram para calar. A língua falha porque a verdade, às vezes, não sabe mentir direito. E, quando tenta, escreve “forca” achando que era “força”.


A linguagem não é uma ferramenta neutra; ela carrega valores, afetos, violências e desejos. A palavra escolhida — ou que escolhe quem escreve — denuncia mais do que qualquer discurso ensaiado em frente ao espelho.

 

 

Mas não sejamos ingênuos. Vivemos numa era em que nada escapa completamente “sem querer”. A política digital opera na fronteira ambígua entre o erro e o teste, entre o lapso e o balão de ensaio. O que parece descuido pode ser método; o que soa como falha pode ser sintoma. E o sintoma, como bem sabemos, insiste.

Michelle, portanto, não é apenas um caso isolado. Ela é um exemplo didático de como a linguagem nos governa mais do que imaginamos. Achamos que usamos as palavras, mas são elas que nos usam — e, às vezes, nos desmascaram. A postagem passa, o print fica, o debate se acende, e o inconsciente, satisfeito, observa, nem sempre em silêncio.

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No fim das contas, a coruja de Minerva pousa mais uma vez. O dia acabou, o post foi apagado, as explicações vieram. Mas já é tarde. A palavra dita — ou escrita — fez o que sempre faz: revelou. E talvez seja isso o mais incômodo de tudo: não que Michelle tenha errado a palavra, mas que, por um breve instante, a palavra certa tenha encontrado quem a escrevesse. Não a intenção declarada, mas o desejo possível. Não o que se quis dizer, mas o que se pôde dizer.

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