A tela

A tela "Fantasias diurnas" (1932), do pintor surrealista espanhol Salvador Dalí

crédito: Salvador Dali Museum, Inc./AP Photo

 

Somos seres errantes, não nascemos como os animais dotados de um instinto que os faz ter o comportamento certo de acordo com a biologia e a fisiologia. Por exemplo, o cio, o saber parir, cuidar da cria, buscar o alimento que o corpo precisa, etc.


Somos seres de desejo, a nossa força motriz são as pulsões, elas nos levam a buscar no mundo uma satisfação que devemos escolher, de acordo com o desejo e nem sabemos exatamente o que nos atrai, o que dá prazer e, às vezes, ou quase sempre, se passamos do ponto, nos excedemos, então o que era prazer torna-se desprazer, angústia.


Porque a falta faz falta. Quando perdemos as medidas, o bom senso, o limite que deve ser respeitado, o ponto onde dizemos “agora, chega”, vamos indo até nos angustiarmos. Dói no peito, parece que alguma coisa dentro dá um nó.


Então precisamos ter cuidado e escuta conosco, já nos alertou Guimarães Rosa: viver é muito perigoso. E Freud, que dizem que tudo explica, ensina que nascemos sem referências simbólicas que nos orientem, sem marcas de civilidade, ou seja, zerados, um corpo natural não marcado. É com as palavras e o afeto, num banho de língua e letras de nossos cuidadores, que nosso corpo é marcado. Recebe as marcas deles e nos situam.


Adquirimos a linguagem e, assim, somos inseridos na cultura, em suas leis gramaticais e sintaxe. Assim internalizamos as regras da cultura e sacrificamos algumas pulsões antissociais, as agressivas e sexuais, que são lançadas num baú de prata dentro de nós: o inconsciente. Nunca morrem e fazem pressão constante para dali se safarem. Este retorno, em parte, é bem-vindo e, em parte, não.

Perversões polimorfas


Porque o que é excluído da consciência para o inconsciente são, entre outras coisas, as perversões polimorfas infantis, segundo disse Freud à Academia de Medicina e causou reações fortes dos colegas naquela época, porque afirma que as crianças não são anjinhos inocentes.


Inocentes são mesmo pois, sem as amarras da moral, não têm noção do bem e do mal e retiram prazer tanto do que é bem visto socialmente quanto do que não é. Obtêm prazer de qualquer forma, quando os ideais da cultura ainda não foram internalizados e assimilados.


Estas perversões polimorfas reprimidas pela educação nunca se esquecem de nós, mesmo depois da assimilação da consciência moral. Mas não podemos mais ignorá-las e pular a cerca provoca mal-estar. O que está no inconsciente em parte precisa ser escutado porque lá também estão nossos desejos, que se tornam sonhos a ser interpretados como um recado dele, distorcido e mascarado para não ser barrado pela censura. Junto estão as perversões polimorfas infantis, pressionando para buscar seu gozo e devemos saber que este não pode ser todo, pleno ou de qualquer forma.

 

Pulsões antissociais


De vez em quando, ou até mesmo frequentemente, conseguem escapar da censura, se libertando e permitindo que pulsões antissociais retornem e permitam comportamentos agora inadmissíveis, incompatíveis com o modo de vida civilizado e fazem grandes estragos: corrupção, lucro ilimitado, danos a outros povos, raças e gêneros, crimes de preconceito e violência.


Assim, caso não tenhamos assimilado uma noção ética, que nos detém, certamente estaremos em risco de causar prejuízos. E se é tão comum causar danos a ponto de colocar a vida de todos em risco, é sinal que muitos perversos passeiam entre nós.


Muitos de nós somos perversos polimorfos (podemos ter muitas formas de gozo) e estas pulsões antissociais estão recalcadas, censuradas e contidas, nós as desconhecemos. Uma vez que escapem e se tornem atos, saindo da fantasia e do imaginário para a realidade, sem limites, assistiremos a episódios terríveis, como mostra a história da humanidade e também o cotidiano contemporâneo, vistos tanto ao vivo como na mídia.


Esta matéria de hoje assistimos no cinema, magistralmente e artisticamente apresentada no filme “Pobres criaturas”, de Yorgos Lanthimos. A personagem principal, Bella Baxter, representada por Emma Stone, explora o mundo com sua mente infantil e mostra tudo isto. Não darei spoiler, mas recomendo assistir, pois é um show de filme. Mereceu todos os prêmios que recebeu no Oscar 2024.