Trabalho não é realização pessoal
Dizem que "quem ama o que faz não trabalha um dia sequer". Mentira
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Dizem que “quem ama o que faz não trabalha um dia sequer”. Mentira. Quem ama o que faz trabalha o triplo — só que sorrindo, o que é bem mais eficiente para a sociedade do desempenho.
Herbert Marcuse denunciou a ilusão moderna de que o trabalho é fonte de liberdade e autorrealização. No fundo, ele via a sociedade industrial — e, por extensão, a nossa pós-industrial, digital, e neurótica — como uma máquina que transforma o ser humano em ferramenta. O “homem unidimensional” é o resultado perfeito disso: alguém que já não distingue suas necessidades reais das necessidades fabricadas pelo sistema. A gente acha que escolhe, mas na verdade só clica em “aceitar todos os cookies”.
O salário, então, é o golpe de mestre. Ele não é feito para o funcionário viver, mas para gastar. O dinheiro do trabalhador dá uma voltinha rápida na conta, paga boletos, parcelamentos e pequenas fugas — e logo volta para o mesmo sistema que o explora. É um círculo vicioso engenhosamente montado: o capital paga só o suficiente para manter o trabalhador de pé, consumindo, acreditando que tem alguma liberdade.
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E é assim que o “trabalhador” se transforma em “trabalha-a-dor” — explorado duas vezes, no esforço de produzir e na obrigação de consumir o que produz. Até o descanso é capturado: o lazer serve para recompor a força de trabalho, e o entretenimento, para manter a alienação confortável.
Uma das grandes tragédias da modernidade, a colonização da consciência, é percebida quando até o tempo livre é controlado, transformando a liberdade em uma espécie de simulacro. Aprendemos a chamar de “fim de semana” o curto intervalo entre dois períodos de obediência, nos convencendo de que a felicidade é possível dentro dessa engrenagem. Lógico, desde que a gente compre a assinatura certa, leia o livro certo, baixe o app certo.
O que o filósofo propunha, no fundo, era uma outra sensibilidade: uma libertação dos sentidos, uma recuperação da imaginação e do prazer de existir sem finalidade produtiva. O verdadeiro ócio como forma de resistência. É o espaço onde o ser humano volta a ser sujeito, e não ferramenta. Escolher por aquilo que não foi inventado e oferecido pelo sistema: a vida, o quintal, o cotidiano, a natureza que já estava aqui antes dele existir.
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E talvez esse seja o ponto mais profundo — e mais incômodo — da crítica de Marcuse: enquanto o trabalho for apresentado como o grande caminho da realização, vamos continuar correndo atrás de um sentido que a própria sociedade do desempenho nos rouba, reduzindo a ação livre à liberdade de continuar funcionando.
Pensar, nesse contexto, é um ato subversivo. Parar, então, é revolucionário
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
