O dia em que Francisco Bosco tropeçou no próprio patriarcado racista
Embora ele tente revestir suas falas de neutralidade, nada disso é novidade
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Quando eu li a “polêmica” entrevista que Francisco Bosco concedeu à revista "Veja", imediatamente me lembrei de um trecho de Audre Lorde que diz exatamente assim:
“As mulheres de hoje ainda estão sendo convocadas para se desdobrarem sobre o abismo da ignorância masculina e educarem os homens a respeito da nossa existência e das nossas necessidades. Essa é uma das mais antigas e primárias ferramentas usadas pelos opressores para manter o oprimido ocupado com as responsabilidades do senhor.”
A lembrança dessas palavras não é à toa. Lorde nos alerta que, quando as ferramentas de um patriarcado racista são usadas para analisar os frutos desse mesmo patriarcado, há limites muito estreitos para qualquer mudança real. É exatamente esse o lugar de onde fala Francisco Bosco ao tentar definir como nós, mulheres, devemos reagir às violências que nos atingem. Sua análise, apresentada como sofisticada e intelectual, opera como mais uma ferramenta desse sistema que nos oprime.
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E, embora ele tente revestir suas falas de neutralidade, nada disso é novidade. O texto de Audre Lorde é de 1979, e ainda assim descreve perfeitamente a previsibilidade e a repetição desse posicionamento masculino. O posicionamento do francisco é tão previsível, tão repetitivo e tão patético que eu sequer me debruçaria sobre esse assunto se ele não tivesse ultrapassado mais uma linha: atacar publicamente, nas redes sociais, a mulher negra Alice Carvalho, que ousou discordar dele dizendo que ele “só falou bosta”. Sim, ele se enxerga como tão incrivelmente intelectual que, para discordar dele em uma rede social, a pessoa teria que escrever uma dissertação ou uma redação estilo ENEM, dissertativa-argumentativa.
Dentro desse repertório previsível de ataques utilizados por homens brancos para nos deslegitimar e silenciar, Bosco recorreu a uma tática muito conhecida por nós, mulheres negras: nos rotular de raivosas. Assim, acionou o que Patricia Hill Collins conceitua como "imagens de controle", tentando se posicionar como o homem educado, civilizado, racional, enquanto coloca a mulher negra como agressiva. Mas a estratégia não rendeu o resultado esperado. O vídeo em que ele chamava Alice de agressiva acabou apagado ou arquivado após ampla discordância nos comentários.
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Essa tentativa de enquadrar mulheres negras como irracionais se torna ainda mais revoltante quando pensamos no cenário concreto de violência que enfrentamos diariamente. Eu me pergunto em que dimensão esse “intelectual” vive que não assistiu à cena da mulher incendiada pelo ex-marido em uma estação da SuperVia, no Rio, em janeiro de 2024. Ou às imagens do elevador em que uma mulher foi agredida com 60 socos pelo namorado. Ou ao caso do médico anestesista preso em flagrante após estuprar uma mulher durante o parto. Ou à jovem deixada embriagada em uma calçada em BH por um motorista de Uber e depois estuprada por outro homem. Esses não são episódios isolados, são expressões de um sistema que nos violenta sem cessar.
Eu poderia passar horas citando apenas os casos mais mediatizados, e você certamente também poderia. Mas, como eu tenho mais o que fazer do que repetir o óbvio, prefiro indicar caminhos críticos. Quero sugerir uma lista de autoras que nos ajudam a compreender e enfrentar a violência patriarcal branca, e que nos encorajam a ser aquelas "neguinhas atrevidas" de que fala Lélia Gonzalez, no trecho em que ironiza a forma como mulheres negras são punidas por não se calarem:
“Agora, aqui pra nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes… Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje...”
E enquanto nós buscamos outras vozes, Francisco Bosco, após apagar o vídeo, decidiu fazer uma publicação se autoindicando para leitura, sim, ele recomendou o próprio livro. Por isso, faço aqui um pedido a vocês, mulheres negras e não negras que me leem: não gastem seu tempo nem seu dinheiro com a obra desse homem. Há uma multiplicidade de autoras negras, brasileiras e estrangeiras, que iluminam caminhos de transformação sem reproduzir o machismo branco travestido de intelectualidade.
Vamos, então, desafiar a lógica da elite masculina branca priorizando as obras de "Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, bell hooks, Jurema Werneck, Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro, Toni Morrison, Paulina Chiziane, Chimamanda Ngozi Adichie, Cida Bento, Gayatri Chakravorty Spivak, Françoise Vergès, Ana Claudia Pacheco, Angela Davis e Nilma Lino Gomes."
Até semana que vem, e não se esqueçam: não invistam energia tentando educar racistas, machistas e misóginos.
Abraços!
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
