Se tem uma característica que ninguém me tira ou modifica é a minha capacidade de indignação diante das inúmeras e constantes violências motivadas pelo racismo. Por mais que sejam recorrentes historicamente, não vou naturalizar episódios de horror justificados única e exclusivamente por sermos negros e negras. Perder a minha capacidade de indignação é o mesmo que me resignar. Não, eu não sou, e nem quero ser, uma negra resignada, daquele tipo que aceita todo tipo de humilhação e sujeição como se não houvesse outra alternativa. Não quero nunca me juntar à turma do “deixa disso” e não reagir diante das atrocidades às quais o racismo acaba por nos sujeitar.
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Talvez por isso eu não consiga digerir muito bem, e menos ainda compreender, por que companheiras de luta, fantásticas e que eu tanto admiro, se propõem a receber um troféu manchado por sangue de pessoas negras, patrocinado por uma instituição marcada por casos de racismo, violência sexual e o cruel assassinato de um homem negro em um de seus estacionamentos. Você que me lê talvez esteja se perguntando do que, e de quem, eu estou falando. Então vamos lá.
Na manhã de ontem, dia 26/11, eu estava dentro do ônibus aguardando as companheiras entrarem para encararmos uma viagem de 13 horas de volta a BH. Estávamos voltando da Segunda Marcha Nacional de Mulheres Negras, que realizamos em Brasília. A Marcha reuniu mais de 300 mil mulheres de todos os estados brasileiros por reparação e bem viver. Eu estava em um misto de sensações, cansaço, alívio por ter dado tudo certo e sentimento de missão cumprida, quando me deparei com o texto de Giovanne Barros,“Carrefour patrocina Troféu Raça Negra enquanto responde por casos de violências contra pessoas negras”, publicado pela Alma Preta.
Curiosa e cética, fui ler e ver quem se propôs a receber esse “trófeu”. Deparei-me com uma lista de 20 pessoas. A primeira delas, a grande homenageada do ano, Leci Brandão, que recebeu um troféu dourado; e outros 19 que receberam um troféu prateado: Regina Célia Silveira, Alexandre Magno – Nenê, Antônio Carlos Tadeu – Mestre Tadeu, Jairo Chabaribery Filho, Maria Ângela de Jesus, Professora Meire Barbosa, Professora Zara Figueiredo, Professor Adilson José Moreira, Desembargadores Luís Guilherme Costa Wagner e Derli Barreto e Silva Filho, José Carlos Arandiba – Zebrinha, Deputados Federais Talíria Petrone e Damião Feliciano; Dodô, do grupo Pixote; Samantha Almeida, Luana Ozemela, Tarciana Medeiros, Diego Barreto e Ciro Possobom.
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Durante a viagem, entrei em contato com três companheiras que foram agraciadas pelo prêmio e que encontrei marchando: a deputada estadual Leci, na primeira marcha em 2015; a deputada federal Talíria e a ministra da cultura Margareth agora na segunda marcha. Queria entender se havia alguma justificativa plausível, algo que eu não fosse capaz de enxergar, mas que elas vissem como relevante para associar seus nomes, suas lutas e suas imagens a um empreendimento que sediou tantos casos de racismo. Entendo que o diálogo é a melhor alternativa e que podemos enxergar ângulos diferentes de uma mesma situação. Eu enxergo pelo ângulo de uma pesquisadora da comunicação, das relações raciais e militante do movimento de mulheres negras. E fico intrigada por qual ângulo duas parlamentares e uma ministra veem esses episódios. Por isso, para as três, fiz as seguintes perguntas:
1. "Qual é a sua percepção sobre o Troféu Raça Negra ser promovido e promover a rede de supermercados Carrefour?" Lembrando que essa rede responde, de forma recorrente, por inúmeros casos de racismo, dentre eles o que ocasionou a morte de um homem negro chamado Alberto Freitas dentro do estacionamento de uma de suas unidades.
2. "A senhora acha coerente com a luta antirracista ter sua foto divulgada com a logomarca do Carrefour pelas redes sociais do prêmio?"
Como vocês que me leem provavelmente deduziram, nenhuma delas, nem suas assessorias, fez questão de me responder. Ao meu ver, porque possuem trajetórias políticas, consciência negra e letramento racial suficientes para saber que não há resposta ou argumento que justifique nomes como os delas estarem vinculados, direta ou indiretamente, à rede de supermercados francesa Carrefour, que vem assolando de forma violenta e pública pessoas negras no Brasil.
Eu não deveria, mas sinceramente, toda vez que me deparo com uma pessoa negra carregando uma sacolinha do Carrefour, eu sinto vergonha alheia. Vergonha porque todo mundo assistiu ao Beto Freitas sendo violentamente assassinado no estacionamento do Carrefour. Todo mundo assistiu, pela TV e pelas redes sociais, a um preto sendo morto igualzinho se mata uma barata.
Todos que recebem esse prêmio, ao meu ver, são como pessoas ilustres carregando a sacolinha do Carrefour, uma espécie de sujeição e servidão voluntária para limpar o sangue vermelho e vivo de pessoas negras que mancha a imagem do Carrefour. A minha admiração pela trajetória política e artística dessas três mulheres negras é gigante e incontornável, e é justamente por isso que acho urgente e necessário não naturalizarmos a associação de nossas imagens e lutas à de racistas que se dizem arrependidos apenas para fazer gestão de marca.
Não se enganem: um empreendimento não tem sentimentos, arrependimento, remorso ou qualquer coisa do tipo, só visa lucro. Portanto, a miséria que o Carrefour utiliza para patrocinar um prêmio é uma estratégia de marketing, e não um compromisso com a luta antirracista. Isso não faz, e nunca fará, dessa rede um aliado; muito pelo contrário. Não se esqueçam que o racismo é um sistema ardiloso, inteligente, uma verdadeira armadilha e que, assim como a Leci, a Talíria e a Margareth “caíram”, qualquer uma de nós também pode cair, seja por vaidade, por ego ou por esquecer o que Audre Lorde ensinou: “as ferramentas dos senhores nunca vão destruir a casa grande.”
A pergunta segue aberta: Por que insistimos em ser patrocinados e, portanto, premiados por instituições racistas?
Como dito anteriormente até o fechamento desta coluna, não obtive retorno. Assim que as parlamentares e a ministra se manifestarem, este texto será atualizado com as respectivas respostas.
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