Concerto da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais na Sala São Paulo no dia 18 de novembro de 2010 -  (crédito: Gladstone Campos/Wikimedia commons)

Concerto da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais na Sala São Paulo no dia 18 de novembro de 2010

crédito: Gladstone Campos/Wikimedia commons

O jornal Le Monde publicou, no mês passado, um artigo em que mostra o cerceamento à liberdade do pensamento científico nas universidades, em todo o mundo. Além de exemplos recentes de manifestações de cientistas renomados aos embargos sofridos pela ciência e em prol da sociedade e da vida, o artigo cita o resultado do Índice da Liberdade Acadêmica (ILA), fruto de admirável trabalho de quatro instituições acadêmicas e de pesquisa.


Conceitualmente, o ILA foi construído com base no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966 e, reforçado, em 2020, pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, ao incluir “(i) a proteção aos pesquisadores contra influência indevida no seu julgamento independente e (ii) a liberdade deles poderem ingressar ou se retirar de projetos que não mais se alinham eticamente”.


O ILA foi criado em 2017 e é liderado por uma equipe germânico-sueca que coordena o trabalho de cerca de 2.300 especialistas responsáveis por analisar 179 países, em cinco parâmetros predeterminados:

 

(1) liberdade de investigação e de ensino;

(2) liberdade de intercâmbio e de difusão universitários;

(3) liberdade de expressão acadêmica e cultural;

(4) autonomia institucional das universidades; e (5) integridade dos campus.

 


Não é minha intenção detalhar os resultados do último relatório do ILA, mas destacar o retrocesso, em 50 anos, dos resultados da liberdade acadêmica: os resultados de 2023 são muito similares ao de 1973, em que somente 39,5% e 35,2%, respectivamente, dos 179 países tinham completa ou elevada liberdade acadêmica. No entanto, o mundo viveu sua expansão nos anos intermediários e o auge se deu em 2006, ano em que 60,6% dos países tinham total ou elevada liberdade.


O artigo do Le Monde intitulado “A liberdade acadêmica regride pelo mundo”, em tradução livre, entrevista a professora da universidade alemã Friedrich-Alexander e especialista em direitos humanos, Katrin Kinzelbach, líder do projeto ILA. Destaco três aspectos de governança, ética e garantia da liberdade intelectual levantados por Kinzelbach ao Le Monde:


• Embora haja indícios de uma relação direta entre maior liberdade e maior excelência acadêmica, em 2022, a China quebrou esse paradigma ao ultrapassar os Estados Unidos e se tornar o primeiro país colaborador para revistas de ciências naturais de alta qualidade, de acordo com o Índice da revista Nature. Ainda não há indícios claros sobre efeitos da ingerência política na produção acadêmica na China – esse país é um contra-exemplo.


• O progresso científico sem autorregulação independente e desprovido de procedimentos éticos sólidos de investigação pode tornar-se perigoso, especialmente quando o progresso técnico e as questões éticas colidem, como no caso da engenharia genética ou do recolhimento de dados sensíveis.


• Na era das fake news, da erosão democrática e da polarização das sociedades, os acadêmicos universitários não devem descansar sobre seus louros se quiserem proteger o seu próprio ambiente de trabalho, serem capazes de completar suas ideias de pesquisa e continuarem a treinar a próxima geração de acadêmicos.


Ainda sobre a baixíssima ou ausente liberdade acadêmica, o ILA indica que entre os grandes países no topo da lista estão China, Rússia e Índia. O Brasil encontra-se entre os países cujo ILA melhorou no último ano (2023), o que se justifica, sobretudo, pelo fim da política de corte de recursos, fortemente vivenciada na academia, entre os anos de 2019 a 2022, mas cujos efeitos ainda são fortemente sentidos.


Na semana passada, os professores da Universidade Federal de Minas (UFMG) decidiram entrar em greve; outras universidades federais seguem se movimentando também nessa direção. Na mesma semana, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, uma das mais conceituadas do país e da América Latina, foi comunicada pelo governo do estado de que deverá desocupar as dependências de sua sede, a Sala Minas Gerais, espaço construído exclusivamente para a orquestra.


O que há de comum entre os movimentos vividos recentemente em Minas Gerais e o Índice de Liberdade Acadêmica? Ambas as situações deflagram o impacto e a vulnerabilidade das decisões políticas de seus líderes/governantes sobre a ciência e a cultura e, por conseguinte, sobre a sociedade. Nos dois casos, há um desprezo à educação e à cultura por meio de processos que as fragilizam ou as desmontam.


A educação superior brasileira começa a dar sinais de esgotamento da capacidade de conviver com (i) a precariedade de recursos para as universidades e (ii) a ausência de concursos e de investimentos - esses últimos, veementemente banidos pelo anterior Presidente da República, que nunca teve cerimônia de demonstrar ausência de apreço à ciência e à universidade.


A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais (OFMG), um dos marcos culturais erguidos no governo de Minas Gerais, na gestão Aécio-Anastasia, há quase 16 anos, tornou-se referência nacional e na América Latina pela sua qualidade técnica, o que lhe garantiu gravações pelo selo Naxos e indicação ao “Grammy Latino 2020 de Melhor álbum clássico do ano”. O atual governador de Minas Gerais já criticou o custo da construção da sede da OFMG e da manutenção de seus músicos.


Não vou me delongar na discussão técnica do ILA, mas apenas apontar que, na esteira de repressões veladas ou não, esse índice é uma importante contribuição para alertar a sociedade e apoiar a comunidade científica, em prol da liberdade acadêmica. Há de se vigiar os sinais que o ILA e os governos apontam.
A vida é um contínuo caminhar em desafiadores campos, ora minados, ora floridos. Na maioria das vezes, esse caminhar segue um automatismo pela imposição da sobrevivência econômica. A sociedade segue em plena alienação, consumida por seus desafios mais básicos.


No entanto, a vida nos revela, de forma silenciosa e lenta, as barbáries do submundo da perversidade e das artimanhas, ao mesmo tempo em que atua para nos fazer sentirmos prazerosamente atendidos e fugazmente realizados. A vida exige vigília constante. E é pela educação e pela cultura que essa vigília se faz condição necessária, sob pena de sucumbirmos ou sermos engolidos pela voracidade dos atrozes. Vigiemos, pois!