Capa do livro O avesso da pele', de Jeferson Tenório  -  (crédito: Companhia das Letras / Divulgação)

Capa do livro O avesso da pele', de Jeferson Tenório

crédito: Companhia das Letras / Divulgação

“O avesso da pele” está para a literatura assim como o filme “Ficção americana” está para o streaming. Enquanto o primeiro ganhou, em 2021, o Prêmio Jabuti de literatura, o segundo venceu, em 2024, o Oscar de melhor roteiro adaptado; em comum, ambos oferecem críticas à compreensão do racismo pelas sociedades. A questão da cor da pele está nas artes e revela uma realidade que os dados não conseguem negar: escancaram uma sociedade incapaz de mudar.

 


O livro “O avesso da pele” vem ganhando notoriedade pela contramão de seu sentido maior, tendo sido vetado, recentemente, pelas secretarias de educação dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Goiás.
“Ficção americana” centra-se na vida de um escritor negro, profundo crítico da discriminação racial e dos movimentos pós-contemporâneos do “marketing da inclusão e da reparação social”, mas cuja carreira só consegue notoriedade quando escreve o livro que “todo branco quer ler e se sentir tocado”. É simplesmente genial!

 


“Quanto mais burro eu sou, mais rico eu fico” é uma frase dita pelo protagonista de “Ficção americana” quando percebe que seu sucesso é oriundo da banalidade de sua escrita “negra”, criada para sensibilizar a sociedade branca e a própria negra que sucumbe ao pensamento do “preto de alma branca” – cabe, aqui, a inspiração vinda do poema “Preto de alma branca ligeiras conceitualizações”, do falecido poeta negro, Adão Ventura, que sintetiza bem essa escolha alienante.

 


Ambos escritores, Jefferson Tenório, de “O avesso da pele”, e o personagem Monk, de “Ficção americana”, buscam resgatar a subjetividade que há por trás da negritude e fazem crítica à apropriação de uma fala inclusiva para “reparação sem interesse histórico”. Como bem satirizado no filme, é a discussão rasa e banal que traz visibilidade e “engajamento”, vendas, aumento da imagem de boa governança social e do “status” institucional.

 


Na vida real, em uma entrevista para o Canal UOL, em 2021, logo após vencer o Prêmio Jabuti, Jefferson Tenório viveu, na pele, o que o protagonista Monk viveu na tela: a entrevista concedida a uma jornalista tão equivocada quanto a editora que comprou os direitos autorais da obra do escritor negro em “Ficção americana”. É inacreditável a falta de compreensão da jornalista que entrevistou Tenório sobre a questão racial que reside no avesso da pele dos negros.

 


Na semana passada, Tenório esteve no programa Sempre um Papo, em Belo Horizonte. Fui assisti-lo e me deparei com um auditório, ouso dizer, que ainda não tem a devida compreensão do que seja o movimento negro ou a consciência negra. Saí incomodada e encontrei a resposta para meu incômodo ao assistir à “Ficção americana”. Lá está tudo que a discussão racial de hoje tenta ludibriar, ou que os brancos pretensamente buscam se apropriar.

 


Um dia antes da palestra de Tenório, foram divulgados os dados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2022, produzidos, anualmente, pelo Programa das Nações Unidas (Pnud). O Brasil não conseguiu, em 2022, retomar o patamar do IDH pré-pandemia, embora o IDH geral tenha apresentado melhora em relação ao ano anterior (2021). Comparativamente aos países da América Latina, o Brasil continua a se situar em posição bem inferior à de seus vizinhos.

 


Chile, Argentina e Uruguai ocuparam 44a, 48a e 52a posições, respectivamente, dentre os 193 países que englobam o cálculo do Pnud Global. Dos três sub-índices que compõem o IDH , a constar, longevidade, educação e renda, o Brasil apresenta diferença expressiva, para menor, nos índices de longevidade (expectativa de vida) e educação (anos médios de escolaridade). Vergonhosamente, o Brasil cai mais duas posições, situando-se em 89a, em um ano em que o governo insistia em negar os efeitos deletérios da pandemia.

 


Longevidade é um sub-índice do IDH que, ao longo das décadas, apresentou a melhor performance e, por conseguinte, maior contribuição para a melhoria do IDH brasileiro. O sub-índice educação, comparativamente aos países da América Latina acima citados, indica disparidades expressivas da escolaridade média brasileira em relação aos países vizinhos. Isso explica, em boa medida, a ausência de ganhos de produtividade da mão de obra brasileira ao longo das décadas.

 


Valendo-se do fato de que pouco mais de 80% dos estudantes do ensino básico brasileiro são oriundos da rede pública (Censo Escolar 2022), não há dúvidas de que o Brasil vive, fazendo um trocadilho, “problema estrutural de educação de base”. E o novelo vai se desenrolando e mostrando, a cada ano, que o problema da educação pública é também um problema de cor.

 


E essa cor está estampada no Indicador de Nível Socioeconômico (Inse) do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que relaciona a escolaridade dos pais e a posse de bens e serviços utilizados pela família para traçar o perfil socioeconômico dos estudantes da escola pública.

 


Nesse desenrolar do novelo racial, os dados do Inse/Saeb 2021 indicam a existência de diferenças socioeconômicas regionais desfavoráveis aos alunos do ensino básico das regiões Norte e Nordeste, onde há maior concentração da população negra do país.

 


Jefferson Tenório fez parte da primeira turma de alunos negros que ingressaram na universidade pública federal. Rompeu a bolha e, segundo seu relato, foi tomando consciência, aos 20 anos de idade, no auge de sua vida universitária, da importância da “subjetividade vivida na pele”. Não se trata de os brancos entenderem o que isso significa, mas de os negros terem essa consciência.

 


“Ficção americana”, “O avesso da pele” e o IDH trazem a impossibilidade, até então, da mudança da condição dos sujeitos negros; da hipocrisia da denominada sociedade diversificada e inclusiva; da consciência do desconforto dos espaços coletivos abertos e misturados.

 


Nesse desalentador cenário da educação básica brasileira, a qual pune o negro que, majoritariamente, é o pobre, não há como fechar os olhos, como poetizado por Adão Ventura, para o fato de que, “faça chuva ou faça tempestade, / meu corpo é fechado / por esta pele negra”; ou não há como não se tocar com o clamor de Elza Soares ao cantar que “na avenida, deixei lá / a pele preta e a minha voz / na avenida, deixei lá / a minha fala, minha opinião”. Definitivamente, não há!