Final de ano é tempo de arrumar gavetas. Jogar fora meia furada e separar o passado do futuro. Mas tem coisa difícil de se desapegar.
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Você abre a gaveta da alma procurando um fiapo de sossego — e pronto, lá vem ela, toda esparramada, mostrando a bagunça que o medo faz quando resolve acampar no peito. Você suspira, meio derrotado, meio rindo de si mesmo. A ideia era tão simples: acordar leve, tomar um café sem culpa, viver. Mas não senhor. Homo paranoidus oblige, como diriam os latinos se fossem neuróticos: você mergulha no museu das aflições, nesse brechó da alma onde tudo é vintage, mas nada presta.
Faz tempo que você coleciona medos como quem coleciona borboletas — só que mais chatos, monótonos e menos coloridos. Já assistiu esse filme mil vezes: você guarda, você procura, você desiste, você guarda de novo. Mas nunca reparou no pulo do gato: no começo, cada paranoia vinha embrulhada em papel de presente, com lacinho de "proteção necessária".
Você acreditava piamente que aquele medo de altura ia te salvar de cair, que aquele preconceito bobo era sabedoria ancestral. Mentira, meu caro. Mentira poética, mas mentira. O que você tem agora é um ferro-velho emocional, uma quitanda de quinquilharias da angústia.
E não adianta fazer cara de paisagem. Mudou tudo — ou você mudou, o que é pior. Aquela gaveta virou o símbolo perfeito da procrastinação existencial, aquela que afunda navios de alegria sem fazer barulho, só com jeitinho, como quem não quer nada.
Exagero? Olhe direito: ninguém abre a gaveta da consciência querendo filosofar. A gente quer é paz, um sorriso fácil, aquela leveza de beija-flor.
Mas o que aparece? Três ressentimentos requentados, uma mágoa de 1995, dois complexos de inferioridade ainda na embalagem. Aí você fecha tudo às pressas, promete que vai resolver "quando tiver tempo", e sai correndo. A gaveta fica lá, convivendo com seus posts inspiradores no Instagram e seus livros de autoajuda nunca lidos.
Você jura que um dia vai precisar daquele rancor. "Vai que vem a calhar", pensa, guardando a neurose como quem guarda moeda estrangeira de país extinto. Problema é seu, caro(a) leitor(a). Mas não venha com essa conversa de que "algumas paranoias são úteis". São dispensáveis, todas elas — principalmente aqueles medos meias-bocas, esses que não têm coragem nem de ser medos direito. Ansiedades clandestinas, preconceitos piratas, se fingindo de bom senso.
Mas olha, já que ninguém vira santo da noite pro dia, que tal ao menos organizar essa zona? Botar cada insegurança na sua caixinha, cada julgamento no seu cantinho. Ou melhor: que tal jogar tudo fora de uma vez e plantar um novo jardim?
Porque o negócio é bravo: você joga uma paranoia no lixo e ela volta multiplicada, tipo pombo de mágico. Embora seja feita de vento e bobagem — memória torta, interpretação furada —, não apodrece nunca. Enquanto isso, as coisas boas, delicadas, vão murchando num canto, sem espaço. E se você não se mexer, esse manual não vai servir nem pra fazer fogueira — porque entre dois medos velhos não rola calor nenhum, só aquela fumaça sem graça da ansiedade requentada.
Mas olha que coisa linda e triste: essa gaveta é profundamente humana. É nosso pequeno altar da ilusão de controle. A gente guarda preconceito achando que é armadura, coleciona medo achando que é sabedoria, empilha julgamento achando que é discernimento. Construímos muralhas num lugar que era pra ser uma praça linda de convívio coletivo. Não precisa ser praça com igreja no centro. Mas se tiver e te der conforto, deixe-a lá.
A gaveta das paranoias é nosso museu particular da teimosia. Ali mora o ego, todo empetecado, se agarrando em crenças que já perderam a validade, mas que resistem bravamente porque, ora, desapegar dói. É nosso relicário laico: em vez de honrar a vida, a gente presta homenagem aos fantasmas que inventamos pra não ter que viver de verdade.
A grande piada cósmica é essa: enquanto a gente sua pra ser autêntico, construir legado, ser lembrado como alguém que ajudou a carregar o andor, são justamente essas gavetas entupidas que contam quem somos de fato.
Mas espera aí— não é exatamente essa a graça? Descobrir o que vale a pena guardar e o que merece ser despachado com elegância? A resposta, prezado(a) colecionador(a) de neuras, pode estar em abrir essa gaveta com coragem e senso de humor. Encarar cada paranoia e perguntar, com carinho e irreverência: "Você ainda me serve ou tá aqui só de enfeite pra me assombrar?".
Nesse 2026 que chega cheio de promessas, escancare as gavetas da alma. Jogue fora os medos anacrônicos, os preconceitos bolorentos, as paranoias de estimação que você cria como se fossem os inigualáveis queijos da Serra do Salitre. E acumule o que realmente importa: gargalhadas sem motivo, abraços apertados, poesia no meio da feira, leveza de quem finalmente entendeu que a vida não cabe em gaveta nenhuma.
Porque a vida, essa danada, essa poética, essa irreverente, não pede licença. Ela arranca a gaveta, vira tudo de ponta-cabeça e dança em cima dos cacos.
Feliz Ano-Novo. Que suas gavetas fiquem vazias, e seu peito escandalosamente cheio de vida.
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