
Anatomia do poder invisível
"A precarização do SUS não é acidente, mas projeto. Quando o Estado é demonizado como ineficiente, abre-se caminho para a privatização da dor"
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No dia a dia dos hospitais, entre o vaivém de jalecos brancos e o gemido de dor dos pacientes, observo as marcas de um sistema que não nasceu aqui. Como médico infectologista, aprendi a diagnosticar doenças pelos seus sinais e sintomas. Como sanitarista e cronista, aprendi a reconhecer as enfermidades sociais pelas suas manifestações cotidianas.
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Há algum tempo, descobri que o mal que aflige nosso sistema de saúde tem nome, endereço e estratégia. Enquanto tratava pacientes com bactérias altamente resistentes, outras mãos, a milhares de quilômetros, costuravam um projeto de poder que hoje determina quantos leitos teremos disponíveis, quanto custará um medicamento, e quem poderá ou não ser atendido. Viver ou morrer.
Em 143 caixas de documentos encontrados no Instituto Hoover na Universidade de Stanford, os pesquisadores brasileiros Luan Brum e Jahde Lopez, do programa de pós-graduação em relações internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, desenterraram a genealogia de nossa atual condição. A organização Atlas Network, criada em 1982 pelo empresário britânico Anthony Fisher, arquitetou uma rede mundial de institutos liberais para disseminar a doutrina neoliberal. No Brasil, essa rede se infiltrou como um câncer silencioso, primeiro nas ideias, depois nas instituições.
O que começou com 350 mil dólares em seu primeiro ano, cresceu para um orçamento bilionário em 2023. Uma metástase financeira que se espalhou por 500 institutos em mais de 100 países, 121 deles na América Latina. O projeto neoliberal, nascido na Inglaterra de Margaret Thatcher, encontrou no Brasil um paciente vulnerável.
Como médico, vejo diariamente as consequências dessa infecção ideológica. A lógica do mercado aplicada à saúde transformou pacientes em clientes, cuidado em mercadoria. A precarização do SUS não é acidente, mas projeto. Quando o Estado é demonizado como ineficiente, abre-se caminho para a privatização da dor.
Lembro-me dos inúmeros senhores Josés, que esperaram meses por uma cirurgia cardíaca, enquanto os recursos públicos minguavam. Ou das donas Marias, que percorreram três hospitais com seu filho febril, porque o posto de saúde do bairro havia sido fechado por "contenção de gastos". Diagnósticos de uma patologia social que se agrava.
O Fórum da Liberdade de 2010, em Porto Alegre, foi a reunião clínica onde se prescreveu o tratamento: financiar a "batalha pelas ideias" na sociedade, influenciar professores, escritores e intelectuais. Três anos depois, as ruas foram tomadas. Em 2016, Dilma caiu. O caminho para o poder estava aberto.
Com Bolsonaro, os institutos neoliberais ocuparam a Fazenda. Paulo Guedes, fundador do Instituto Millenium, tornou-se o médico-chefe de uma economia doente. Dezesseis dirigentes de institutos liberais assumiram cargos estratégicos. A Lei de Liberdade Econômica de 2019 foi seu receituário.
Na saúde, o diagnóstico é claro: menos recursos para prevenção, mais espaço para planos privados, terceirização do atendimento. Durante a pandemia, vimos o ápice desse projeto: negacionismo científico aliado à defesa da economia acima das vidas. A morte como externalidade aceitável.
Enquanto isso, documentos revelam como a Série Notas, financiada pelo Center for International Private Enterprise, redigia projetos de lei para o Congresso brasileiro nos anos de 1990. Pagos em dólar, influenciavam 38% dos nossos representantes. A democracia infectada pelo vírus do capital externo.
Corporações como Exxon Mobil, Philip Morris, dentre outras, financiaram essa rede. Em 1998, antes da Conferência de Kyoto, a Exxon patrocinou um programa da Atlas com milhares de dólares para influenciar decisões políticas sobre meio ambiente. A saúde planetária também estava no alvo.
Como médico, sei que para curar é preciso primeiro compreender a doença. Como cronista, entendo que para transformar é necessário narrar o invisível. O neoliberalismo não é apenas uma teoria econômica, mas um projeto de poder que coloniza mentes, corpos e sistemas de saúde.
O que vemos hoje com Trump e suas taxações é o lado mais grotesco desse movimento que sorrateiramente invadiu o planeta e nosso cotidiano. As mãos, que confiscaram nossos respiradores durante a pandemia de Covid-19, hoje tentam sufocar nossa economia e nos retirar até o Pix, nossa “jaboticaba”, que comprometeu os lucros bilionários do sistema financeiro privado internacional, do qual Trump é parceiro inseparável e beneficiário. Bolsonaro é apenas o pretexto para os interesses que ele representa, os quais estão longe de ser patrióticos.
No hospital, vejo a resistência diária de profissionais que ainda acreditam no cuidado como direito, não privilégio. Vejo pacientes que se organizam em associações para exigir medicamentos e tratamentos. A cura talvez esteja nessa consciência coletiva que começa a despertar.
Como complemento a esta análise, vale trazer as reflexões da filósofa Marilena Chauí, que oferece uma perspectiva crítica sobre o fenômeno neoliberal no Brasil. Para Chauí, o neoliberalismo não representa apenas um conjunto de políticas econômicas, mas configura-se como um sistema totalitário que transforma todas as instituições sociais em empresas a serem geridas segundo a lógica do mercado.
Chaui argumenta que o projeto neoliberal opera pela desinstitucionalização do espaço público e pela judicialização da política, esvaziando o sentido da democracia participativa. Segundo a filósofa, este modelo se aproveita e reforça a estrutura historicamente hierárquica, oligárquica e autoritária da sociedade brasileira, perpetuando a ausência de criação e garantia de direitos para a maioria da população.
Enquanto isso, em algum lugar, novas caixas de documentos aguardam para revelar os próximos capítulos desta história. E eu, entre receitas e crônicas, sigo buscando palavras para diagnosticar o presente e prescrever futuros mais saudáveis para todos nós.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.