Nos últimos dias, tenho vivido experiências intensas ao lado de pessoas muito queridas que enfrentam momentos delicados de saúde. Algumas delas ocuparam, em minha história, o lugar simbólico de pai; outras, o de mãe. E há ainda aquela a quem chamamos, com afeto e humor, de madre superiora, por sua sabedoria e cuidado firmes. Em comum, todas elas têm me conduzido ao leito — esse lugar silencioso, frágil e, ao mesmo tempo, tão cheio de presença. Ali, a vida se revela em sua forma mais crua e verdadeira. Tenho observado, com o coração aberto, as diferentes maneiras como o corpo adoece e como a alma responde. E é nesse cenário que percebo algo essencial: quando o corpo para, a alma é convidada a sentir.

Ficar acamado é uma experiência que transforma silenciosamente a percepção de si e da vida. Não é apenas o corpo que adoece ou se limita; é também a identidade que se vê obrigada a se reorganizar. De repente, a pessoa se depara com a própria fragilidade de maneira crua e inegociável. O que antes era garantido - caminhar, levantar, agir de forma independente - torna-se um desejo, e não mais uma certeza.

Neste cenário, o lado humano se revela em profundidade. A vulnerabilidade escancara emoções muitas vezes ignoradas no ritmo acelerado do cotidiano. Surge o medo: medo do que será, do que se perdeu, do que pode nunca mais ser. Surge também a sensação de abandono, porque a dependência física muitas vezes é acompanhada por um sentimento de invisibilidade - a impressão de que o mundo segue seu curso enquanto quem está acamado parece esquecido no tempo.

É aí que o tempo ganha uma nova dimensão: o tempo que já não é mais controlado por quem está acamado, mas que pertence também ao outro - aquele que cuida, aquele que traz alimento, medicação, atenção. Nesse compasso diferente, nasce a ansiedade: a espera que não tem hora marcada, a necessidade que precisa ceder ao ritmo alheio.


Dominar essa ansiedade é um exercício profundo de entrega. Exige reconhecer que o controle é uma ilusão - especialmente quando a vida pede ajuda. Aprender a estar no tempo do outro, aceitar a presença cuidadora sem culpa ou cobrança, é um movimento interno de humildade e fé. Uma rendição consciente, não ao desespero, mas à realidade do momento.


Nesse processo, a pessoa também é convidada a um mergulho interior - uma travessia em que se depara com as suas próprias luzes e sombras. Como disse Carl Jung: “Até onde conseguimos discernir, o único propósito da existência humana é acender uma luz na escuridão do mero Ser.” Somos seres feitos de luz e sombra, e é nas horas de fragilidade que essa dualidade se torna ainda mais visível.


Onde residem as nossas sombras? Nos recantos mais íntimos do ser, onde o medo, a raiva, a insegurança e o orgulho podem surgir. Em momentos de limitação física, é natural que essas emoções venham à tona com mais força. A dependência do outro pode despertar a sombra da impaciência, a angústia da impotência, o receio da rejeição.


Mas é também nesse cenário que a luz interior se faz necessária e presente. A fé, a coragem, a humildade, a compaixão e o perdão brilham como guias silenciosos. A luz que nos guia nas horas de escuridão não é apenas externa; ela nasce dentro de nós, na capacidade de acolher nossa vulnerabilidade e de confiar na generosidade do outro.


Ficar acamado é, portanto, uma travessia humana e espiritual. Uma oportunidade de reconhecer que a força não está apenas no que podemos fazer por nós mesmos, mas também na coragem de nos deixarmos cuidar. De confiar. De esperar. De sentir.


Carl Jung também nos lembra que não é possível despertar a consciência sem dor. Enfrentar nossa própria alma pode ser assustador, mas é também o caminho para a verdadeira liberdade e realização. Não devemos temer a escuridão, mas abraçá-la como parte integrante de nossa jornada rumo à luz.


Meu desejo é que este texto sirva como uma pausa consciente para refletirmos sobre os tempos em que o corpo nos obriga a parar, para que a alma enfim seja ouvida.  

Que possamos, com coragem e gentileza, explorar os recantos mais profundos de nossa existência, iluminando cada sombra com a chama da consciência.


Quem sabe assim, podemos verdadeiramente nos tornar quem somos destinados a ser: seres humanos feitos de luz e sombra, em constante busca por equilíbrio e presença.

Talvez compreenderemos que a verdadeira cura, muitas vezes, não acontece apenas no corpo que se reergue, mas na alma que, ao atravessar a noite escura, encontra em si mesma a luz que sempre esteve lá - esperando para iluminar o caminho.


E deixo aqui algumas perguntas para quem quiser seguir refletindo após essa leitura:


  • Que sombras emergem quando me sinto vulnerável?

  • Como posso reconhecer e iluminar essas sombras?

  • Estou disposto(a) a confiar no tempo e no cuidado do outro?

  • Quais sentimentos reprimidos surgem quando sou forçado(a) a parar?

  • O que tento controlar em minha vida e o que acontece quando esse controle me escapa?

  • Como lido com a espera, com a ausência de respostas rápidas, com a lentidão do tempo alheio?

  • Em que momentos me sinto desconectado(a) de mim e dos outros? Por quê?

  • Que aprendizados posso tirar deste tempo de pausa forçada?

  • O que posso descobrir sobre mim quando o fazer dá lugar ao simplesmente ser?

  • Tenho permitido que alguém cuide de mim sem culpa ou resistência?

  • O que a minha fragilidade revela sobre minha força?

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