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Estado de Minas

Embate de ideias entre índios e catequizadores

Historiador mostra como a doutrina católica enfrentou resistência dos nativos no início da colonização da América. Em vez de simplesmente incorporarem o cristianismo, os indígenas realizaram um diálogo intercultural, modificando ou rejeitando conceitos trazidos pelos europeus


postado em 02/01/2016 00:12 / atualizado em 03/01/2016 13:24

Quando os europeus tomaram conhecimento dos territórios americanos, a Igreja Católica logo chegou a uma conclusão: com a cristianização do Velho Continente, o diabo havia se refugiado no Novo Mundo, e, por isso, era preciso combater Satã, convertendo as almas ingênuas dos indígenas. A tarefa coube aos jesuítas, membros da ordem religiosa Companhia de Jesus admirados na época por sua capacidade “civilizadora”.


Durante muito tempo, historiadores enxergaram a catequização indígena como uma mera imposição, na qual o cristianismo era forçado na cultura nativa. Essa visão, contudo, passou, nos últimos anos, por um aprimoramento, e, atualmente, sabe-se que os índios foram capazes de, em certa medida, adaptar a religião europeia à própria cultura, em um esforço de “diálogo intercultural”. Buscando desvendar como ocorreu esse contato de valores e crenças, o historiador Francismar Alex Lopes de Carvalho, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), estuda desde 2013 as missões Maynas e Mojos, criadas nos atuais territórios do Equador e da Bolívia, respectivamente, a serviço da Espanha.


A partir de documentos inéditos, obtidos em arquivos e bibliotecas de Espanha, Itália, Portugal e Estados Unidos, o pesquisador descreveu e analisou como povos da floresta amazônia absorveram a cultura ocidental. O trabalho resultou nos artigos Imagens do demônio nas missões jesuíticas da Amazônia espanhola, publicado na revista Varia Historia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Estrategias de conversión y modos indígenas de apropiación del cristianismo en las misiones jesuíticas de Maynas, aceito no Anuario de Estudios Americanos, de Sevilha (Espanha).
Carvalho se interessou pelo diálogo intercultural entre europeus e indígenas ao elaborar sua tese de doutorado, defendida em 2012, na USP. No trabalho, ele observou que a conquista da Amazônia por portugueses e espanhóis se baseou numa política de cooptação dos líderes tribais, na qual os caciques barganhavam vantagens materiais em troca do apoio aos colonizadores. A partir daí, ele passou a estudar de que maneira os indígenas da região se apropriaram do catolicismo, constatando que as negociações entre europeus e nativos também se estendiam à esfera ideológica. Os índios assimilavam os conceitos cristãos, mas conferiam significados estranhos às noções originais, o que levou à emergência de um cristianismo híbrido.



Poder limitado Essa “barganha espiritual” começava nas “entradas missionárias”, prática que, provavelmente, remonta à atuação do padre Manoel da Nóbrega em São Paulo no século 16. Ladeados por soldados, os jesuítas “convidavam” os índios a migrar para os novos povoados. “Caso recusassem, estavam sujeitos a uma ‘guerra justa’ movida pela tropa”, conta Carvalho. O objetivo dessas entradas era obrigar os nativos a aceitarem “a fé pelo medo”, como descreveu o cientista político José Eisenberg no livro As missões jesuíticas e o pensamento político moderno (UFMG, 2000).
O mesmo procedimento era aplicado na Amazônia. Contudo, como as fronteiras no Norte eram muito fluidas, portugueses e espanhóis disputavam a lealdade dos índios. O convencimento, portanto, não podia se basear na mera coerção. Pedro Puntoni, orientador da tese de Carvalho, observa que “o contexto da fronteira é decisivo” para explicar a negociação com os líderes tribais, que resultou na concessão de benefícios econômicos e certa autonomia administrativa às etnias.
Além disso, como eram poucos, os missionários repassavam aos índios diversas atribuições, como as tarefas de catequistas, sacristãos, músicos e fiscais da doutrina. A delegação de funções, quase todas de caráter espiritual, restringia muito o poder dos jesuítas de impor suas ideias. “Nas missões de Maynas, os missionários tiveram de lidar com interpretações alternativas que os índios faziam da doutrina cristã, as quais os padres não podiam evitar de todo, porque dependiam dos conceitos disponíveis nas línguas locais e de auxiliares nativos para fazer avançar a conversão”, explica Alex Carvalho.

Demônio Como a crença da Igreja à época era a de que o demônio havia se instalado no Novo Mundo, a resistência dos indígenas ao pensamento europeu era vista pelos missionários como prova da ação do diabo. Daí, a frequente menção a essa figura nos relatos dos jesuítas e a obsessão dos religiosos de identificar traços demoníacos nas crenças nativas. “É nesse cenário de ‘demonização’ das deidades indígenas que os padres operaram uma metamorfose nas entidades espirituais que causavam danos na figura cristã do diabo”, diz Carvalho.
Nessa transformação, porém, o conceito cristão experimentou mudanças relevantes. Os índios incorporaram o demônio como uma divindade a mais em seu panteão ou simplesmente passaram a chamar de diabo certos espíritos malignos já conhecidos. Para os missionários, era difícil evitar deslocamentos no significado do termo “demônio” devido à estratégia linguística que eles adotavam. Para enaltecer as noções cristãs, diz Carvalho, “os jesuítas preferiam manter em espanhol os termos positivos e centrais para a Igreja, como Deus, sacramentos etc., e lançar mão das palavras nativas para descrever o negativo”. Tamanha sutileza, porém, acarretava essas consequências inesperadas, que incluíam o hábito de alguns nativos de usarem os termos negativos para se referir aos próprios colonizadores.
A tradução dos conceitos europeus para o pensamento tribal enfrentava ainda outras limitações. Se os nativos aceitaram bem a ideia de demônio, o mesmo não se pode dizer sobre o inferno. “O conceito parecia absurdo aos indígenas”, explica o pesquisador. Isso porque aceitar essa ideia era acreditar que os antepassados estavam no lugar reservado aos pecadores simplesmente porque tinham morrido antes de conhecer o cristianismo, incluindo, aí, os mais bravos guerreiros e os mais sábios xamãs.


O respeito a esses líderes espirituais foi outro foco de resistência às crenças propagadas pela Igreja, e as tentativas de eliminar o papel dos xamãs como intermediários entre os mundos físico e espiritual também fracassaram. “Os missionários não podiam destruir completamente essa crença porque eles mesmos eram aceitos nas comunidades como xamãs mais poderosos, generosos e efetivos”, assinala Carvalho. “Assim, o missionário era visto como alguém que possuía a inusual capacidade de manipular forças espirituais. Por essa razão, era um provedor tanto de benefícios como de pragas e maldições.” Investir contra esse esquema de pensamento nativo seria combater algo que assegurava a aceitação dos jesuítas. A estratégia dos europeus passou a ser, então, a de relegar os feiticeiros indígenas ao ostracismo, salvo em alguns casos em que, por não se oporem ao Evangelho, podiam ser incorporados como auxiliares.

Revoltas Nem sempre, contudo, os missionários eram bem-sucedidos ao negociar sua inserção nas comunidades, e não foram raros os casos de sublevação. Na dissertação A expressão da vontade: relações interétnicas e rebelião indígena nas missões de Maynas (1685-1698), defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2009, Roberta Fernandes dos Santos mostrou as dificuldades do padre Enrique Richter em estabelecer uma missão às margens do Rio Ucayali. “Ao que parece”, sugere Carvalho, a respeito desse episódio, “o padre teria rompido a negociação inicial que facultou sua aceitação pelos índios, ao não suprir os itens prometidos, ausentar-se por longos períodos e impor uma disciplina que não foi tolerada”. A rebelião que se seguiu culminou com o assassinato do jesuíta em 1695.
No entanto, é precisamente nessas situações de conflito que a “demonização” das crenças indígenas mostrava sua face positiva. No artigo Contato, guerra e negociação: redução e cristianização de Maynas e Jeberos pelos jesuítas na Amazônia no século XVII, publicado na Revista de História Unisinos em 2007, Fernando Torres-Londoño, professor do Departamento de História da PUC-SP, observa que a presença do demônio acabava por eximir os indígenas de qualquer “responsabilidade quando emergia o conflito”.


Na visão dos jesuítas, explica Carvalho, como as rebeliões podiam ser creditadas a Satanás, abria-se um canal de reconciliação com os revoltosos. “A rigor”, conclui o pesquisador, “atribuir ao demônio a responsabilidade pelos martírios e destruição das missões tornava os índios tão humanos quanto os europeus”.


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