
Decapitação pode parecer, como diria Gândavo, coisa de bárbaros. Mas a cena encontrada em uma sepultura a 55cm de profundidade pelos pesquisadores aponta na direção oposta. Não se trata de um evento de violência e punição, mas que, ao contrário, revela a sensibilidade e a sofisticação ritualística de um povo que tinha apenas o corpo humano para expressar seus princípios cosmológicos a respeito da morte. “A ideia não é de sacrifício. A decapitação fazia parte de um ritual funerário no qual era importante proceder a redução do corpo do falecido, ou seja, a decapitação não foi a causa da morte. Ela foi realizada depois da morte do indivíduo”, esclarece ao Estado de Minas o antropólogo brasileiro André Strauss, principal autor do estudo e pesquisador do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, na Alemanha.
Descoberto em 2007, o sepultamento descrito no trabalho é o de número 26, entre os já encontrados em Lapa do Santo. O esqueleto enterrado pertencia a um homem jovem do Povo de Luzia, nome dado ao grupo de caçadores-coletores que habitava a região (leia Palavra de especialista). O crânio decapitado estava coberto pelas duas mãos do morto, amputadas e posicionadas com cuidado: a direita sobre o lado esquerdo da face, com os dedos apontando para o queixo; e a esquerda, colocada da porção direita do rosto, mas na direção contrária. Análises feitas com um microscópio que gera modelos tridimensionais de marcas e cortes indicaram que os tecidos moles foram removidos com lascas de pedra.

A configuração peculiar e cuidadosa na qual a ossada foi enterrada sugere que ela não pertencia a um inimigo, mas, provavelmente, a um indivíduo de status único, como alguém venerado. Não foram encontradas, por exemplo, marcas de violência nem características típicas de uma cabeça-trófeu, como buracos preenchidos com cordas que facilitariam a exposição do crânio. O enterro ocorreu pouco tempo após a morte. “O sepultamento 26 faz parte de um padrão mortuário em que a redução de cadáveres frescos e a remoção de partes do corpo eram um elemento central, mas o foco não era, necessariamente, a cabeça”, diz Strauss.
Reformulação Esse achado levou o pesquisador a repensar suas impressões sobre as práticas funerárias de Lapa do Santo. “Durante muito tempo, os arqueólogos acreditaram que o enterro dos mortos em Lapa do Santo era um processo simples e trivial. Foi justamente com a descoberta do sepultamento 26 e de outros semelhantes que começamos a perceber que essa visão estava equivocada”, explica Strauss. A ossada permite que, do ponto de vista cronológico, os pesquisadores reformulem as teorias sobre a época em que se iniciaram os rituais de decapitação na América do Sul. Até então, o caso mais antigo era do sítio Asia 1, no Peru, datado em cerca de 4 mil anos atrás.
O novo trabalho também oferece novos dados sobre a geografia desse tipo de ritual, pois achava-se que a prática, em tempos pré-coloniais, era registrada apenas na região dos Andes, no lado oposto do continente. “O desafio agora é entender como o caso que reportamos se relaciona com os do outro lado do continente. Se é que há alguma relação”, diz Strauss. Enquanto a questão permanece aberta, os estudos em Lapa do Santo seguem a todo vapor, com esforços concentrados em extrair o DNA do Povo de Luzia e estudar os microfósseis do sítio. “E claro, seguimos escavando o sítio. A cada ano, descemos cerca 40cm. É um processo de longa duração.”
