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Bolsonaro na Hungria: como primeiro-ministro Viktor Orbán se tornou inspiração para a ultradireita

À frente de uma nação com menos de 10 milhões de habitantes, Orbán tem influência 'desproporcional ao tamanho do país que comanda', avalia cientista político


17/02/2022 06:38 - atualizado 17/02/2022 10:05


Primeiro-ministro da Hungria após pronunciamento em 12 de fevereiro de 2022
Orbán está no terceiro mandato consecutivo (foto: Bernadett Szabo/REUTERS)

Desde que chegou ao poder, em 2010, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, vem acumulando poderes por meio de uma guinada autoritária que começou no Judiciário e no Legislativo, avançou para a imprensa e chegou às escolas.

Em pouco mais de uma década, Orbán trocou centenas de juízes das cortes húngaras por aliados, alterou a lei eleitoral para beneficiar seu partido, transformou centenas de jornais independentes em máquinas de propaganda do Estado e chegou a reimprimir livros didáticos de História com conteúdo considerado xenofóbico.

O primeiro-ministro húngaro foi um dos poucos líderes europeus presentes na posse de Jair Bolsonaro em 2019. Poucos meses depois, em abril, recebeu Eduardo Bolsonaro em Budapeste, quando o filho do presidente estava à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

Bolsonaro retribuiria a visita em 2020, mas teve de suspender os planos por conta da pandemia de covid-19. Nesta quinta-feira (17/2), ele realiza a primeira viagem oficial ao país.

O presidente brasileiro não é o único a fazer acenos ao polêmico primeiro-ministro. O avanço do autoritarismo na Hungria fez de Orbán inspiração para a ultradireita em outros países.

É o caso da Polônia, que vem implementado uma série de medidas que retiram autonomia do Judiciário. No poder há 6 anos, o partido ultraconservador polonês Lei e Justiça já declarou espelhar-se nele e no seu Fidesz (Partido União Cívica Húngara).

"A Hungria é um país pequeno [com cerca de 9,7 milhões de habitantes], e, quando se trata das grandes decisões no cenário internacional, o primeiro-ministro não tem muito a dizer - mas é verdade que Orbán tem uma influência desproporcional ao tamanho do país que comanda", avalia o cientista político Zsolt Enyedi, professor da Central European University (CEU).

Na avaliação de Kim Lane Scheppele, professora de sociologia e relações internacionais na Universidade de Princeton, nos EUA, Orbán chama atenção da ultradireita por ter conseguido incorporar uma espécie de "ditador do século 21", que corrói as instituições democráticas por dentro, muitas vezes de forma discreta, por meio da lei.

"Se pensarmos nos ditadores do século 20 - Hitler, Stalin -, eles vinham com ideologias, tanques nas ruas…todos esses sinais perigosos que hoje todos reconhecemos e que, uma vez identificados, provavelmente seriam combatidos. As novas ditaduras conhecem esse script - e fazem diferente", diz ela, que é especialista em direito constitucional húngaro.

"O que eles fazem é atiçar as massas com uma retórica inflamada. Mas há um limite do que a retórica inflamada pode fazer, então eles vão consolidando poder através de mudanças legais, bloqueando poder de forma que a oposição tenha cada vez menos chance de ganhar as eleições. Eles mantêm uma fachada democrática, mantêm todas as instituições em seus lugares para fazer parecer que ainda existe democracia", completa.

Entenda, em quatro pontos, a estratégia por trás da escalada autoritária na Hungria - e por que ela vai ser colocada à prova nas eleições nacionais marcadas para abril.

1. O controle do Judiciário

Orbán é um velho conhecido da política húngara. Estudante de Direito no fim dos anos 1980, estava entre os jovens que tomavam as ruas da capital, Budapeste, para protestar contra o regime comunista (a Hungria esteve na esfera de influência da União Soviética por 50 anos, de 1949 a 1989).

Conquistou o primeiro cargo político em 1990, eleito para o parlamento. Tornou-se primeiro-ministro em 1998 e perdeu a disputa pela reeleição em 2002. Foi nessa época que seu partido deu início a uma guinada ideológica, deixando para trás o viés liberal e abraçando um discurso nacionalista e religioso, centrado na religião católica.

A retórica conservadora o alçou de volta ao poder em 2010 - e o ajudou a se reeleger em 2014 e 2018.

Pouco depois de tomar posse, ainda no primeiro mandato, Orbán aproveitou a ampla base de apoio que conquistara no Parlamento para aprovar uma série de medidas que enfraqueciam o Judiciário.

Aumentou o total de juízes do Tribunal Constitucional de 11 para 15 e indicou todos os ocupantes das quatro novas cadeiras. Reduziu a idade de aposentadoria compulsória para juízes e promotores, abrindo espaço para indicações de aliados. Criou o controverso Departamento Judiciário Nacional para centralizar a administração e coordenar a indicação de novos juízes.

A primeira titular do DJN foi uma colega de faculdade de Orbán, Tünde Handó. Seu marido, József Szájer, ajudou a redigir a nova Constituição aprovada em 2011, que substituiu a Carta de 1949.

Diversas instituições independentes já apontaram que o Judiciário vem perdendo sua autonomia e prejudicando a separação entre os três poderes considerada essencial para o bom funcionamento da democracia.

Ainda em 2012, quando a nova Constituição entrou em vigor, a Comissão de Veneza, órgão consultivo do Conselho Europeu (instituição oficial da União Europeia), chamou atenção para a concentração excessiva de poder do Departamento Judiciário Nacional, que contradiz o princípio da independência do Judiciário defendido pela União Europeia, da qual a Hungria é membro desde 2004.

"É uma instituição problemática, à qual foram dados poderes excessivos e que é dirigida por pessoas próximas ao governo", resume Lydia Gall, advogada no Human Rights Watch, organização de promoção dos direitos humanos que tem acompanhado de perto a situação no país.

Além de escolher juízes, o DJN tem a prerrogativa de distribuir parte dos casos entre as cortes - decidindo, na prática, qual juiz vai avaliar cada caso. Em paralelo, o Conselho Nacional de Justiça, que deveria coibir eventuais abusos e garantir o bom funcionamento do judiciário, foi esvaziado.


Parlamento húngaro em sessão em 2020
Maioria no Parlamento possibilitou que Orbán aprovasse nova Constituição e aprovasse leis controversas (foto: Tamas Kovacs/EPA-EFE)

2. Uma avalanche de novas leis

O controle do Judiciário anda de mãos dadas com outra característica marcante do regime de Orbán, a transformação do arcabouço legal.

Logo nos primeiros anos de mandato, o primeiro-ministro aproveitou a maioria que tinha no Parlamento para mudar uma enxurrada de leis - além de redigir uma nova Constituição.

Scheppele, que estuda justamente o sistema legal do país, lembra que teve de contratar um pesquisador assistente para conseguir dar conta do volume de trabalho.

"O Parlamento aprovava muita coisa. Eram 300 páginas de leis - e no meio delas alguns parágrafos sobre outra coisa, que se relacionavam com algo que estava escrito em outro lugar. Era preciso ler com atenção cada palavra para entender o que estava acontecendo e montar uma espécie de quebra-cabeça", conta.

"Em determinado momento meu conhecimento de húngaro não era rápido o suficiente para dar conta das milhares de páginas, e tive de contratar um assistente."

Para ela, esse foi um movimento planejado.

"Enquanto esteve fora do poder, o partido de Orbán literalmente pagou para que empresas de todo o país redigissem projetos de lei. Por isso o sistema é tão hermético e permite um bloqueio tão significativo de poder - porque eles o desenharam como um sistema antes de voltar ao poder em 2010."

Uma característica particular da Hungria, contudo, facilitou o processo, acrescenta Enyedi.

Ao contrário do Brasil, por exemplo, que é uma federação com Estados, em que governadores concentram um certo nível de poder, o país é um Estado unitário.

"É mais fácil centralizar poder", diz ele.

"O que Orbán fez foi tomar controle de todos os operadores da política logo que foi eleito e depois, gradualmente, acumular poder sobre os processos de tomada de decisão em cada segmento da sociedade. Hoje nenhuma grande decisão é tomada na indústria da moda, da cultura, do esporte, dos negócios [livre de influência do governo]."


Protesto em frente ao Parlamento húngaro em julho de 2021 contra a aprovação de legislação anti-LGBT
Protesto em frente ao Parlamento húngaro em julho de 2021 contra aprovação de legislação anti-LGBT: homossexuais estão entre os alvos do avanço do autoritarismo no país (foto: Reuters)

3. O cerceamento da imprensa

O controle da imprensa também tem sido um pilar importante no processo de concentração de poder em torno de Orbán.

"Hoje algo entre 85% e 90% dos meios de comunicação são direta ou indiretamente controlados pelo governo", diz Gall, que vive há 15 anos em Budapeste.

Ao contrário do que aconteceu com o Judiciário e com o sistema legal, contudo, a transformação nessa frente foi mais gradativa. No decorrer dos últimos 12 anos, foram vários os instrumentos usados pelo governo para sufocar a liberdade de imprensa.

Um deles é o órgão regulador, criado ainda em 2010. O Nemzeti Média- és Hírközlési Hatóság (NMHH, algo como "autoridade nacional de mídia e infocomunicações") tem controle sobre as concessões de rádio e televisão e poderes para multar empresas de mídia, inclusive por causa de coberturas que considere desequilibradas - algo que jornalistas afirmam ser usado para intimidar os profissionais.

Um caso com grande repercussão nesse sentido foi o da rádio Klubrádió, que perdeu a licença para operar no início de 2021, após uma longa batalha judicial, que durou quase uma década.

Ao comentar sobre o caso, András Arató, que durante 20 anos comandou a emissora, afirmou que foram muitos os obstáculos com os quais a rádio se deparou. Houve os problemas com Conselho de Mídia (ligado ao NMHH) e com a Justiça, mas também questões de ordem financeira.

Segundo ele, o governo pressiona empresas privadas para que suspendam os anúncios em veículos vistos como críticos, além de redirecionar sua verba para publicidade aos meios simpáticos à administração.

"Em vez de atacar a liberdade de imprensa de forma direta, prendendo jornalistas ou censurando jornais, Orbán usou alavancas econômicas para enfraquecer a imprensa independente. Foi uma estratégia inteligente, que evitou comoção internacional, mas que aos poucos, um a um, os meios de comunicação independentes foram sendo eliminados", afirmou Arató em um artigo de opinião.

A ofensiva ganhou outra frente no fim de 2018, quando foi criada a Fundação de Imprensa e Mídia da Europa Central, conhecida pelo acrônimo KESMA (de Közép-Európai Sajtó és Média Alapítvány).

De lá para cá, dezenas de empresas privadas transferiram os direitos de propriedade para a fundação, que se tornou um gigante da mídia do país. Hoje concentra mais de 500 veículos, entre canais de televisão, portais de notícias e estações de rádio que, de forma geral, fazem uma cobertura elogiosa ao governo.

Em um relatório técnico feito a pedido da Comissão Europeia, o Centro para o Pluralismo da Mídia e a Liberdade de Imprensa (Center for Media Pluralism and Media Freedom), ligado à European University Institute, afirmava em 2019 que a fusão de centenas de meios de comunicação em uma fundação suscetível à interferência do governo representava um risco ao pluralismo da imprensa no país.

Em seu último Monitor do Pluralismo da Mídia, de 2021, o CMPM avaliou como alto o risco representado pela concentração de mercado dos veículos de imprensa na Hungria.


Viktor Orban
Liberal conservador no início da carreira, Orbán abraçou retórica nativista no fim dos anos 90 (foto: Reuters)

4. O nacionalismo populista

A grande maioria das mudanças que Orbán e seu partido vêm fazendo na Hungria nos últimos 12 anos só foi possível, de certa forma, porque o governo tem apoio popular.

"Ainda que Orbán seja um líder autoritário e tenha destruído os pesos e contrapesos [que garantem o funcionamento do Estado de Direito], ele conta com algum apoio genuíno por várias razões, sendo uma delas o fato de expressar ansiedades, medos e aspirações de muitos húngaros", avalia o cientista político Zsolt Enyedi, da CEU.

Nesse ponto, o discurso do primeiro-ministro se aproxima do de muitos líderes populistas de direita que ascenderam ao poder na última década com uma retórica nacionalista, conservadora e que ataca minorias.

O governo tem uma posição clara anti-imigração desde que voltou ao poder em 2010. Em 2015, a Hungria foi o primeiro país a erguer uma fronteira física para impedir que milhares de refugiados atravessassem o país. Mais recentemente, o país mudou seus livros escolares para promover a ideia de que é uma nação "homogênea" e alertar sobre os "perigos" da imigração.

Também são alvos de ataque a comunidade LGBTQIA+, organizações da sociedade civil que promovem, por exemplo, os direitos das mulheres, e a própria União Europeia. O bilionário húngaro George Soros está no topo da lista de inimigos, acusado de financiar entidades supostamente interessadas em promover a imigração em massa e destruir o país.

Para Scheppele, a retórica conservadora também foi e tem sido usada como estratégia pelo primeiro-ministro.

Ela chama atenção para a transformação do discurso do próprio Orbán como político, algo que ela conseguiu ver de perto quando dava aulas em uma cidade que concentra população de etnia húngara no oeste da Ucrânia nos anos 90.

"Orbán começou como um liberal conservador, até que, no meio dos anos 90, percebeu que o eleitorado com esse perfil era pequeno. Foi aí que ele começou a mudar, a se apresentar como nacionalista conservador, e começou a testar esse discurso, essa nova persona, no oeste da Ucrânia", relata.

"Coincidentemente, eu ensinava direito constitucional na mesma cidade naquela época. Orbán e sua entourage ficaram no mesmo hotel que eu estava, então pude acompanhá-los por alguns dias, assisti-lo testar a nova retórica. Foi assim que eu o conheci pessoalmente."

A hegemonia do primeiro-ministro será colocada à prova em abril, para quando estão marcadas eleições nacionais. Em uma movimentação surpreendente nos bastidores da política, Orbán deve enfrentar pela primeira vez uma oposição mais organizada, que se uniu em torno de uma frente ampla com 6 partidos.

Em um país polarizado e com as instituições democráticas fragilizadas, o resultado ainda é uma incógnita.

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