"Rua Silva Jardim tem esse nome em homenagem ao jornalista fluminense Antônio da Silva Jardim (1860-1891), que se tornou conhecido como radical defensor da República, odiado pelos monarquistas. Foi companheiro de Lopes Trovão, também jornalista, um dos fundadores do Partido Republicano e exímio orador. Dizem que, após a proclamação da República, esse jornalista teria dito a frase: “Esta não é a República dos nossos sonhos”. A morte de Silva Jardim foi inusitada: ele foi engolido pelo vulcão Vesúvio, em julho de 1891.
Quando fui morar nessa rua, não sabia nada disso, nem sequer que ali morou, em duas casas – nos números 117 e 107 – o poeta Carlos Drummond de Andrade. Humberto Werneck, que escreve a biografia do poeta, deu a seguinte informação a José Eduardo Gonçalves: “O pai de Drummond construiu ali duas casas, uma ao lado da outra. ‘A casa sem raiz’ do poema não era a 117, e sim a 107, maior que ela. É desta que o Nava fala. Solteiro, o poeta morou ali. Quando se casou, em 1925, foi viver no 117, imóvel que em algum momento ganhou dos pais. Dali saiu quando se mudou para o Rio, em 1934”.
Na faculdade de Letras, lembro-me de que a professora Eneida Maria de Souza nos deu para ler a primeira parte do poema “Lanterna mágica”, sobre Belo Horizonte, em que o poeta fala na “casinha de alpendre com duas janelas dolorosas”. Certamente, o poeta referia-se à sua residência, na Rua Silva Jardim, no número 107, que lhe inspirou outros textos, como, por exemplo, “A casa sem raiz”, publicado em Boitempo: esquecer para lembrar, em que fala de um “diminuto alpendre/ onde oleoso pintor pintou o pescador/ pescando peixes improváveis”. Registra que aquela não era mais a casa itabirana, mas “suposta habitação de um eu moderno”. No desfecho do poema, numa estrofe com um verbo solitário, Drummond recorre a um trocadilho: “Rua Silva Jardim, ou silvo em mim?”.
Pedro Nava, em antológico texto de “Beira-mar”, conta um episódio ocorrido na casa de número 107, da Silva Jardim, onde o pai do poeta itabirano surpreendeu seu filho e Pedro conversando no galinheiro. O memorialista descreve minuciosamente a casa:
Esta casa que frequentei só, com Alberto Campos, com Emílio Moura, para visitar o poeta. Era uma simpática edificação, defronte à Igreja da Floresta, pintada de óleo verde, com entrada central, escada de degraus de mármore dando no “diminuto alpendre” cujas paredes ostentavam, como era moda em Minas, afrescos (o do pescador que ornava o prédio do Carlos, foi-se, conforme verifiquei em romaria de saudade feita com ngelo Oswaldo a 16 de dezembro de 1976). Esse alpendre dava para as portas de serventia do domicílio e à direita, para a do quarto independente habitado pelo poeta. Em 30 cima deste quarto, telhado de duas águas fazendo chalé, simétrico ao do lado oposto do imóvel. Os dois, ligados pela cobertura da parte central (NAVA, 1979, p. 172).
Passo pela Rua Silva Jardim: ali, quase defronte de onde morou Drummond, há um dos vários imóveis tombados pelo Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte a partir de 1996 – mas que depois foi “destombado” por insatisfação da família. É onde mora Elza Mutti, uma senhora com mais de 90 anos. Elogia o bairro, onde vive há mais de oito décadas. A casa foi comprada por seu pai, Lindolfo Mutti, do antigo proprietário Antônio Rigotto Zanella. Um dos descendentes da família Rigotto é o Nelson Rigotto, dono de uma coleção de carros antigos, ali na Rua David Campista. Segundo Luís Góes, Nelson integra a “Turma da Floresta”, com outros moradores das ruas José Pedro Drummond, Silva Ortiz, Marechal Deodoro, Aquiles Lobo, Avenida Assis Chateaubriand, entre outras. Alguns participantes dessa turma florestina, pelo menos até 2008: Miguel Challup, Cristiano, Júnior, Carlinhos Jacaré, Marcelo Catulino, Luiz Eduardo (Lulu Borbolha), Alexandre (Andorinha), Marcelo Maciel (Pipa), Paulinho Porrada, Carlos Aníbal (Cacá), Antônio Mesovita (Pimpão), Jeferson e José Marcos Pinto Coelho, além de Maurílio Fleury. Cada bairro tem suas turmas “mas, uma vez dentro da floresta, vivem mais” – como li no livro 5 das “Crônicas de gelo e fogo”.
A família Mutti, como muitas da Floresta, tem origem italiana. Pedro Rogério Couto Moreira, em “Sob o céu de Belo Horizonte”, lembra: “Aqueles italianos de bochechas rosadas, plenos de vida, além de introduzirem no nosso idiossincrático paladar de garimpeiros os sabores da massa, afinaram os nossos ouvidos de violeiros para os sons divinais do violino e do bel canto”. Na Floresta, conta o amigo Ruy Izidoro, que estudou no Barão de Macaúbas, que havia muitas famílias de sobrenomes italianos, como os Társia, os Righi e os Pantuzza.
Dona Elza Mutti tem uma irmã chamada Glória e ambas são frequentemente citadas no “Diário de uma garota”, de Maria Julieta Drummond de Andrade. Nesse belo e singelo livro, a filha do poeta registra os dias de férias em que passou na Floresta, na Rua Silva Jardim, entre dezembro de 1941 e início de março de 1942. Elza não conhecia o livro, mas se lembra de que Maria Julieta era uma menina alta, loura, bonita. Tratada no diminutivo, assim como sua irmã, Elza era dois anos mais moça do que Maria Julieta, que tinha a mesma idade de Glória. Minha mulher, Francisca, ia lendo trechos do diário e eu ficava espreitando cintilações nos olhos de Dona Elza, que comentava: “Nossa, ela detalhou tudo; nossa, vinha sempre aqui, morava ali de frente”. Várias vezes Maria Julieta também cita a casa de Maria José, ou Zezé (mas não aquela), onde aprendia a tocar piano. Essa casa está ainda ali, na vizinhança, com o número 183, em meio a várias pichações.”
(...)"
Trecho do livro “Floresta”, de Caio Junqueira Maciel, sobre o bairro belo-horizontino. Mineiro de Cruzília, Caio nasceu em 1952 e cursou o colegial no Instituto Padre Machado, de Belo Horizonte. “Foi na Floresta que, transitando da adolescência para a mocidade, iniciei o assombro e o alumbramento da descoberta do álcool, do sexo, da literatura e das amizades fundantes”, escreve o autor, na introdução: “Escrevendo, escavo tesouros, busco o possível. Não há como esquivar-se desse sentimento chamado Floresta”.
Leia: Floresta: histórias e curiosidades de um bairro ligado às origens de BH
O lançamento do 39º número da coleção “BH: A cidade de cada um”, com edição de José Eduardo Gonçalves, será no dia 11/11, de 11h às 14h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi).
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O lançamento do 39º número da coleção “BH: A cidade de cada um”, com edição de José Eduardo Gonçalves, será no dia 11/11, de 11h às 14h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi).
