(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

'Shakesperianas', de Nara Vidal, reúne anotações, impressões e reflexões

Com projeto gráfico caprichado, livro de autora mineira associa figuras femininas de Shakespeare aos quatro elementos da natureza


23/09/2023 04:00 - atualizado 23/09/2023 06:08
671

Nara Vidal, autora de 'Shakesperianas'
Nara Vidal, autora de "Shakesperianas": associação das figuras femininas aos quatro elementos da natureza (foto: Bruna Casotti/Divulgacao)


Fernanda Medeiros
ESPECIAL PARA O EM


Nas 38 peças de William Shakespeare (1564-1616), encontramos aproximadamente 980 personagens. Desses, apenas 155 são mulheres, o que parece uma proporção muito baixa diante da enorme memorabilidade de muitas delas. Não nos enganemos por essas cifras, pois, e apostemos que o elenco feminino de Shakespeare possui potência análoga à dos “happy few” de “Henrique V”, graças a qualidades como inteligência, força e agudeza. Assim sendo, é muito bem-vindo um livro que fale sobre essas figuras, como faz “Shakespearianas - As mulheres em Shakespeare”, de Nara Vidal, o primeiro em português do Brasil dedicado a comentar uma seleção de personagens femininas de Shakespeare.
“Shakespearianas”, com projeto gráfico super caprichado e ilustrações belas e inspiradoras de Marcia Albuquerque, traz ensaios sobre dezessete personagens, oriundas de tragédias, comédias e uma peça-romance. Nara as distribuiu entre os quatro elementos: Julieta, Cleópatra e Catarina representam o fogo; Lavínia, Tamora, Ofélia e Desdêmona são associadas à água; Sycorax e as Três Bruxas de “Macbeth”, junto com Cordélia, Goneril e Regan respondem pela terra; e Portia, Lady Macbeth e Viola ligam-se ao ar. Trata-se de um panorama bem variado, contemplando desde peças muito badaladas, como “Romeu e Julieta”, a outras menos exploradas, como “Titus Andronicus”. A autora nos diz, na apresentação, que o que a levou a associar as figuras femininas aos quatro elementos foi considerar que essas personagens são “viscerais, como elementos da natureza, com toda ambivalência que carregam” (p.22).

Nara Vidal é uma premiada escritora de ficção, além de editora, tradutora e professora. Seu contato com a obra de Shakespeare e a paixão pelo poeta-dramaturgo vêm desde a infância, como ela nos conta, e sua atitude diante das personagens transita entre a observação psicológica, o comentário histórico, a análise literária e a afetividade. Nara não é uma acadêmica, e na escrita deste livro faz uso muitas vezes de um estilo que faz lembrar uma coleção de anotações, impressões e reflexões registradas ao longo de suas leituras, combinando descrições das personagens com relatos de porções dos enredos, informações históricas, comparações entre peças, discussões de temas atuais e, vez por outra, pitadas autobiográficas.

Ensaística  livre

A opção por uma ensaística mais livre tem prós e contras. Contém acertos, mas também algumas imprecisões. Refiro-me tanto a lapsos menores, como, por exemplo, a confusão quanto ao nome do primo de Julieta (Teobaldo é chamado de “Baltasar”, na p. 44), e um erro na tradução de uma fala do Duque Orsino (p. 186) – não é o duque que vai morrer, mas seu apetite –, como a algumas passagens que podem ganhar maior clareza e organização.

Bons momentos do livro encontram-se, outrossim, no capítulo sobre Ofélia, em que Nara nos lembra da misoginia do Príncipe Hamlet (p. 95) – algo sobre o que precisamos mesmo falar mais – e sugere a presença do tema do aborto na peça (p. 96), indicado pelas referências feitas por Ofélia a flores e ervas. No capítulo sobre Sycorax (“A tempestade”) e as Bruxas (“Macbeth”), Nara engrandece a presença da mãe de Caliban, indo além do que o texto shakespeariano verbaliza, mas fazendo uso de sua voz autoral de forma política, ao dar visibilidade a figuras como ela, que só começaram a ganhar atenção a partir dos estudos pós-coloniais, na segunda metade do século 20.

Por outro lado, há vezes em que a ausência de fundamentação de certas opiniões termina criando pontos de fragilidade na obra. Creio que isso se dê na suposição da felicidade do casal Catarina e Petruchio, de “A megera domada” (p. 72) – o aval de Harold Bloom aqui não supera a carência de dados textuais –, ou na ideia de que Lady Macbeth seja “uma precursora do debate entre maternidade e anseios pessoais das mulheres” (p. 170), o que soa muito estranho ou despropositado. Afinal, ter filhos e garantir sua posteridade seria uma das saídas possíveis para impedir a loucura e a derrocada do casal Macbeth.

Finalmente, nesse conjunto de observações trazidas pelas “Shakespearianas”, há que se destacar a importância da defesa resoluta feita por Nara Vidal da inteligência e da capacidade analítica das personagens femininas de Shakespeare, bem como a lucidez da autora em não atribuir a Shakespeare ou à obra o epíteto de “feminista”. Não é necessário nem desejável rotular Shakespeare, e uma das razões para seus textos atravessarem tantos séculos ainda com relevância incontestável é justamente seu caráter polifônico, avesso a esta ou àquela categoria. Como pensou Nara ao construir seu livro, as personagens que escolheu não se esgotam na discussão das representações de gênero, mas também se abrem, para além desta, ao amplo debate sobre “sociedade e política” (p. 16).  


* Fernanda MedeiroS é professora associada de Literatura Inglesa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), bolsista Prociência e pesquisadora da obra de William Shakespeare e seus contemporâneos


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)