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Estado de Minas PENSAR

Joca Reiners Terron: 'O Centro-Oeste é ignorado no imaginário brasileiro'

Em entrevista ao Pensar, autor de 'Onde pastam os minotauros' reflete sobre como o agronegócio da região pode ser um pano de fundo para a criação literária


25/08/2023 04:00 - atualizado 25/08/2023 00:16
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JOCA REINERS TERRON
"O limite do agronegócio é que a Constituição seja obedecida e a reforma agrária seja realizada a contento. O Mato Grosso, cujas terras estão nas mãos de latifundiários, foi devastado. Imagine se a Amazônia estivesse nas mãos de poucos, como acontece no Centro-Oeste. A selva não existiria mais", JOCA REINERS TERRON (foto: EDITORA TODAVIA/DIVULGAÇÃO)

 

Agronegócio. De uma maneira geral, essa parece ser a palava que surge na cabeça dos brasileiros de outras regiões quando se fala do Centro-Oeste, vastidão territorial com 1,6 milhão de quilômetros quadrados formada por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, além do Distrito Federal. Soja e carne bovina estão no topo do agronegócio apregoado como um dos grandes pilares da economia nacional, entre vivas e muitas críticas. A literatura, entretanto, também descortina um outro Centro-Oeste, mistura realidade, ficção e fantasia para contar infinitas histórias, como as encontradas nos livros do escritor cuiabano Joca Reiners Terron. Ele retorna ao mundo literário com “Onde pastam os minotauros”, drama ambientado num abatedouro de bois ilhado entre uma plantação de soja num lugar imaginário no interior do Mato Grosso onde dá liberdade plena à imaginação. “O Centro-Oeste é lugar ignorado no imaginário brasileiro, e, como todo ermo, exige ser preenchido por histórias”, afirma Terron nesta entrevista ao Pensar.

 

O escritor também demonstra preocupação com as terras dominadas pelos grandes latifúndios: “O limite do agronegócio é que a Constituição seja obedecida e a reforma agrária seja realizada a contento. O Mato Grosso, cujas terras estão nas mãos de latifundiários, foi devastado. Imagine se a Amazônia estivesse nas mãos de poucos, como acontece no Centro-Oeste. A selva não existiria mais”. Outra reflexão provocada pelo novo livro de Terron é o consumo excessivo de carne, neste caso, a partir da realidade cruel de degola de bois no matadouro. “Quando compra um bife no supermercado, você pensa se o sujeito que matou aquele animal disfarçado ali em isopor e plástico sofreu ao fazer aquilo? Pensar nisso é um primeiro passo, outro é lembrar que a morte é o principal artigo à venda num supermercado, e que isso tem um preço”, reflete o autor.

 

 

Considero “Onde pastam os minotauros” um dos livros mais perturbadores e inquietantes da literatura brasileira nos últimos tempos, aliás uma característica de suas obras. Como surgiu a ideia de escrevê-lo? Sem trocadilho com os bois, é mais uma obra gerada pelo confinamento angustiante da pandemia, que também tem presença marcante na vida do Crente, diante do drama da filha e da mulher? E por que a figura do Minotauro? Para mostrar o sofrimento dos dois lados, o humano e o animal?

Tenho ouvido isso de que o livro é inquietante. Talvez eu devesse ter escrito um livro reconfortante, já que passamos por tempos difíceis e as pessoas estão exaustas de serem ameaçadas. Nunca sei explicar de modo coerente a origem dos meus livros. As narrativas surgem de maneira confusa, a partir de estímulos trazidos pela realidade dos fatos e leituras, e aos poucos vão se configurando na forma de escrita. Pode levar bastante tempo para chegar a esse estágio. Como exemplo, “Onde pastam os minotauros” teve seu primeiro ímpeto em 2007 ou 2008, quando numa conversa com Gustavo Mayrink (ambos trabalhávamos numa produtora de cinema), discutimos uma possível pauta que envolvia abate religioso halal e kosher num matadouro do Mato Grosso do Sul. A reportagem não foi adiante, mas a ideia permaneceu palpitando todos esses anos. Me identifico com o Minotauro. Sinto que, igual a ele, estou entre ser uma coisa e outra, parado no meio do caminho, inquieto e incômodo.

 

Quanto tempo você levou para escrever as 180 páginas de “Onde pastam os minotauros”. Foi rápido ou precisou de tempo para reflexão ou de dar muitas voltas, como faz o Crente? Ou Lucy, “aprender a pensar no pequeno e no imenso” em busca de um mundo mais justo?

Meus livros sempre exigem o tempo da reflexão e o tempo da escrita, que são tempos diferentes. Penso, penso e penso. Depois sento e escrevo. Esse teve a primeira fagulha há 15 anos, como disse, e foi escrito entre agosto de 2021 e outubro de 2022.

 

“Quando a piedade do Cão passou a ser usada para servir ao abate industrial de animais, quando ele adquiriu consciência de que seu carinho pelo gado só servia para esse apaziguamento de fundo econômico, que seu amor pelos bichos amaciava a carne deles, aumentando o valor do quilo, decidiu arranjar outro modo de sobrevivência”. Essa convicção do Cão evidencia uma contradição do método halal dos muçulmanos do ponto de vista dos animais – que é muito claro no livro: enganá-los com bom trato para garantir o bem-estar deles antes do abate e minimizar o sofrimento?

O manejador tem de ser um sujeito jeitoso, isso em qualquer matadouro não apenas halal, pois os animais se ressentem quando são maltratados e não seguem para o abate tranquilamente, caso reconheçam do outro lado da cerca quem os maltratou. O Cão, que ao nascer foi abandonado pela mãe num cocho da família do Crente, percebe que seu carinho pelos animais é explorado. Na narrativa, ele se encontra no meio dessa contradição. A questão é que o abate religioso, halal e kosher, não é exatamente humanitário. Nele, o animal precisa estar consciente para ser abatido. E o abate industrial de qualquer ordem, religioso ou não, é execrável, pela mortandade, mas também pela dor moral que causa nas pessoas que trabalham na linha de frente do abate. Quando compra um bife no supermercado, você pensa se o sujeito que matou aquele animal disfarçado ali em isopor e plástico sofreu ao fazer aquilo? Pensar nisso é um primeiro passo, outro é lembrar que a morte é o principal artigo à venda num supermercado, e que isso tem um preço.

 

Como se deu a ideia de trazer o conflito étnico-religioso do Oriente Médio para o Centro-Oeste brasileiro na figura do abatedor Ahmed?

O Brasil é o principal exportador de carne halal, então me pareceu que Ahmed cabia na realidade retratada no livro. Além disso, há evidentes conotações simbólicas na forma em que os palestinos são tratados por Israel que remetem aos abatedouros: cercas que confinam, violência indiscriminada e um labirinto político e humanitário sem saída.

 

“O Crente e o Cão desistiram dela faz tempo. Da carne. Primeiro, se enfastiaram das sobras, dos pedaços duros que os ricos não comem: vísceras, músculos, o rabo cozido, os bagos do boi. Não muito depois, o fastio evoluiu para o nojo. Lucy os acompanhou no jejum”. Esse trecho dos protagonistas e a crueldade na matança dos bois e no desfecho da narrativa podem levar o leitor de “Onde pastam os minotauros ” a abandonar o consumo de carne ou pelo menos a refletir sobre o excesso de consumo? Você tinha essa ideia em mente ao escrever uma obra indigesta para os comedores de carne bovina?

Não acredito que uma obra de ficção possa ter efeito tão concreto. Eu não tinha em mente qualquer aspecto moral que porventura o livro possa trazer, ao menos não no sentido que uma fábula de Esopo tem, delineada e inflexível. Talvez a história do Cão, do Crente e de Lucy Fuerza apenas queira incutir algumas perguntas na cabeça do leitor, provavelmente sem respostas. Mas não sou alheio à ideia de que o último anseio moral da literatura é mudar o mundo. Só não acredito que isso ainda seja possível, ainda que alguém deixe de comer carne por causa do livro. Bem, talvez isso seja mudar o mundo.

 

“O Crente preferia que o outro não pensasse. A vida é mais simples de cabeça vazia, tem menos remorso. Desde que o amigo começou a pensar, muita coisa vinha acontecendo”. Inversamente ao pensamento descrente do Crente, seus livros fazem o leitor refletir sobre a condição humana e os males da civilização. Como diria Fernando Pessoa: “Pensar incomoda como andar à chuva, quando o vento cresce e parece que chove mais”. Esse é o seu intuito também?

Não sei. Tenho a impressão que meus melhores pensamentos ocorrem nos meus livros, ou que meus livros não passam de uma desculpa para eu pensar melhor por meio da escrita. No resto do tempo os pensamentos vêm de maneira confusa e imaterial, e nos textos essa confusão encontra sua forma. Quando escrevo, desejo apenas expressar o que sinto e penso, então entendo que se os livros causam o mesmo nos leitores, eles cumprem seu papel.

 

Outra característica do livro é o avanço da criação de gado e do plantio de soja, ambos em grande escala, engolindo os recursos naturais no Centro-Oeste brasileiro. Na sua opinião, qual o limite do agronegócio e como equacionar essa questão paradoxal: essencial para a economia brasileira e danoso para o meio ambiente?

O limite do agronegócio é que a Constituição seja obedecida e a reforma agrária seja realizada a contento. O Mato Grosso, cujas terras estão nas mãos de latifundiários, foi devastado. Imagine se a Amazônia estivesse nas mãos de poucos, como acontece no Centro-Oeste. A selva não existiria mais. Não é questão meramente de economia, mas de sobrevivência: o cultivo familiar, incluindo a pecuária, restabeleceria valores morais, econômicos e humanitários que podem salvar a natureza e o planeta para gerações futuras. É o caminho mais razoável.

 

Por que o Centro-Oeste tem tantas histórias para contar? Seria pela imensidão territorial e pela diversidade regional?

O Centro-Oeste é lugar ignorado no imaginário brasileiro, e, como todo ermo, exige ser preenchido por histórias. O Mato Grosso em particular, pois Goiás talvez seja mais conhecido, e mais especificamente a região fronteiriça com Paraguai e Bolívia, onde algumas de minhas narrativas se passam, na província mutante do [livro] “Curva de Rio Sujo, que fica em algum lugar entre Bela Vista e um buraco negro.

 

“Onde pastam os minotauros” se passa no interior do Mato Grosso do Sul?

Para mim só existe um Mato Grosso, o imaginário. Não obedeço às restrições diegéticas, por exemplo relativas às distâncias entre uma cidade e outra. Entendo que algumas dessas narrativas se passam em “Curva de Rio Sujo”, que pode estar no Mato Grosso, mas também pode ser uma estação de metrô abandonada em “O riso dos ratos” ou um bar flutuante no rio Purús, como em “A morte e o meteoro”. Neste novo livro é o matadouro, cujo nome traz a sigla CRS. Trata-se de um lugar que vai mudando, e que sumirá num buraco negro em meu último livro. Mas isso não passa de especulação.

 

Uma pergunta indispensável para o autor de uma obra tão brutal sobre a matança exacerbada de bois para alimentação humana: você come carne?

Sim, eu como carne. Mas cada vez menos, por causa do meu metabolismo que se tornou mais lento com a idade, e por causa do preço. Procuro diminuir o consumo ao longo da semana, e quando possível consumir carne orgânica ou com selos de tratamento humanitário aos animais. 


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