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Estado de Minas PENSAR

Velhice e isolamento ditam 'O céu implacável', de João Anzanello Carrascoza

Com humor, escritor avalia a decadência de personagem do livro anterior, 'Inventário do azul', que enfrenta sozinho a pandemia


11/08/2023 04:00 - atualizado 11/08/2023 00:04
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João Anzanello Carrascoza
João Anzanello Carrascoza: isolamento, mas sem perder o humor (foto: Juliana Monteiro Carrascoza)
Graça Ramos*
Especial para o EM
 
Desde que vi, em uma tela, a capa do novo romance de João Anzanello Carrascoza, “O céu implacável”, cultivei a ideia de estar diante de um díptico sobre a solidão. Acabara de ler o livro anterior do autor, “Inventário do azul”, e a proximidade das imagens que compõem as capas dos dois livros, ambas assinadas pela artista Laura Gorski, me sugeriu um tecido narrativo interligado, a falar sobre esse estado intrínseco do ser.

Artistas visuais modernos passaram a denominar como dípticos obras que são apresentadas lado a lado, quase sempre em dimensões idênticas, mas não necessariamente coladas uma à outra como era comum na Antiguidade. Ocorre o mesmo com a recente produção de Carrascoza – um dos mais prolíficos autores contemporâneos brasileiros. Não é imperativo ler o primeiro romance para chegar ao segundo, mas um complementa o outro, à moda das temporadas de uma série televisiva.

Na capa do mais recente, imenso círculo azul ultramarino recebe ao centro idêntica figura geométrica em tom ouro envelhecido, mas de menores proporções. Algo se reduz no campo visual. A ideia de densidade e introspecção se impõe. Na do livro anterior, no círculo em azul mais suave, uma sobreposta folha seca de jatobá está entreaberta. No regaço, em posição ascendente, surgem seis crescentes círculos dourados. O olho lê um mundo em germinação. Justapostas, de maneira frontal na estante, compõem um díptico.  

Decisão editorial das mais acertadas, as capas metaforizam os enredos dos romances. “O céu implacável”, agora lançado, trata da velhice do personagem, homem de 60 anos, que enfrenta o isolamento social provocado pela pandemia de covid-19, mas também cultiva, por escolha, o estar só. A obra anterior, “Inventário do azul”, concentra-se no personagem vivendo embates da jovem existência.  

Outros parentescos podem ser apontados: ambos os romances são construídos por inúmeros pequenos capítulos, às vezes micros (de uma linha, quase aforismas), apresentam dimensões semelhantes e o protagonista é identificado apenas como “Ele”, segundo o discurso do narrador onisciente. Nas mais de 300 páginas de cada livro, o narrador é voz das mais falantes, contrapondo-se ao silêncio radical do personagem. 

Mas algo se modifica de um volume para outro. Em “O céu implacável”, essa voz a falar do outro torna-se tão íntima, tão próxima do “Ele”, que narrador e personagem parecem simbiotizados. O efeito aglutinador potencializa-se também porque, em cada capítulo, poucas vezes a terceira pessoa é citada. O jogo de aproximação das identidades surte ainda outra consequência: faz parecer que é o personagem quem se revela. A dinâmica bem-armada fortalece a interação com quem lê, pois, é como se a leitora/o leitor escutasse ou falasse algo sobre si. 

Escritor premiado, mestre na arte do conto, teria sido fácil para o autor produzir uma narrativa em primeira pessoa – recurso tão presente no contemporâneo. De teses acadêmicas a romances, passando pelo jornalismo, e até em resenhas literárias, o “eu” se transformou em instância das mais recorrentes nas diferentes modalidades do narrar. Carrascoza socorreu-se desse modo subjetivo em outros textos. Eu gosto, em especial, da forma como o utilizou em “Elegia do irmão”, quando o narrador – favor não confundir com o autor – evoca de maneira pungente, amorosa e inteligente a perda de uma irmã. Também personagem, ele não deseja protagonizar e, com sua voz habilidosa e dicção suavemente rítmica, deixa a irmã habitar as páginas. 

Nos dois romances-dípticos, a figura ficcional criada por Carrascoza é um disciplinado escritor que inventa estórias “para doer menos”. É também pai de um rapaz e uma menina, filhos de duas ex-mulheres, que o narrador chama de “amores mortos”. São tocantes as páginas em que o amor pelos dois rebentos, de convivência agora mediada pelas telas, é expresso. Em “O céu implacável”, o amor leva ao medo. “Ele” sente medo não do fim em si, pois sabe que “morrer é o presente dado à vida que se cumpre”, o que receia é não conseguir acompanhar a vida futura da filha, ainda muito pequena.


Pitadas deliciosas de humor



Se pensarmos no tempo cronológico em que vivemos, regido pelo horror à velhice, quando os 60 anos, em termos publicitários, são os novos 40, o livro ganha pitadas de humor deliciosas, por fazer contraposição a tais discursos. Esse homem solitário, às voltas com perdas provocadas – ou imaginariamente antecipadas – pela idade, não se furta a definir seu estágio etário, classificando-o como “degenerescência física”, ‘degradação física”, “decadência física”. 

Não pense estar diante de um tipo masoquista ou depressivo. Ele apenas toma consciência de estar velho, prescrutando o horizonte de nossa experiência derradeira. Por isso, em linguagem afetivamente contida, se apresenta, às vezes, melancólico; em outras, liricamente ácido, desejando se preparar para atingir o ‘imentsum”, o estado das coisas depois que existiram, conceito vindo da filosofia hindu, com a qual teve contato. 

São tantos os momentos referentes à idade, que, se o personagem falasse diretamente com quem o lê, ousaria dizer que sua soledade se faz tão rumorosa quanto a do tolamente sábio Hant’a. Trata-se do personagem criado pelo escritor checo Bohumil Hrabal no livro “Uma solidão ruidosa”, que expõe o sequestro da liberdade de expressão na época do domínio da antiga União Soviética. Só que o “Ele” do romance brasileiro não apresenta disposição para qualquer denúncia social. A singularidade da obra de Carrascoza reside na destreza de um personagem masculino falar sobre o íntimo, o pessoal, com voz que alterna o flerte entre o tolo e o grandioso da existência.

Em “O céu implacável” a calibragem do humor sutil impede que se torne excessivo o derramamento lírico, que poderia ser confundido como murmúrio ou algo meio “naif” por gente leitora menos apegada à expressão do sentimental. Ela aparece, em especial, nos capítulos que compõem a série denominada “Na Contramão”. Como o título anuncia, são pensamentos do personagem fora da lógica corrente. Entretanto, para quem acompanha o circuito literário, talvez o mais delicioso instante de riso seja quando o narrador comenta trechos de resenhas sobre a obra ficcional do personagem.  

Nesse momento, aumenta o embaralhamento entre o real e a ficção, que já havia aparecido quando o narrador, no uso de brincadeira inter-romances, comentara ser autor do livro intitulado “Inventário do azul”. No caso das resenhas, citadas em páginas espelhadas e tituladas de “Lado A” e “Lado B”, rápida busca no Google confirma que os comentários das autoras, Stefania Chiarelli e Eliza Cazorla, foram realmente emitidos em relação à escritura do autor Carrascoza, assim como seus nomes coincidem com as figuras públicas que encarnam. Elas expressaram posições opostas: a primeira elogiou, a outra criticou a literatura do escritor. Nas páginas do romance, elas – e suas afirmações – transformaram-se em entes ficcionalizados. Impossível não projetar ser uma ação do escritor, rindo das formas de recepção de sua obra, apontando para o dilema: se ficar atento demais ao olhar da crítica, a escrita pode ser paralisada.

Outros divertidos enganos são propostos ao longo do romance. Há imenso prazer no narrador em blefar com a vida e a literatura, com o sentido de verdade/ficção, realidade/irrealidade. Assim, reforça o caráter efêmero e pendular de todas essas instâncias, se agarra à solidão do personagem “alter ego”, e fortalece a convicção de que o único verbo a ser conjugado chama-se escrever. Verbo com especial definição em seu particular dicionário, talvez partilhada pelo autor de “O céu implacável”: “mesmo na pauta dos murmúrios, é grito, berro, urro”.

Graça Ramos, mestre em Literatura e doutora em História da Arte, é autora de “O apagamento de Volpi: presença em Brasília” (Tema Editorial) 
 
“O céu implacável”
  • De João Anzanello Carrascoza
  • Alfaguara
  • 384 páginas
  • R$ 84,90
 
“Inventário do azul” (2022)
  • De João Anzanello Carrascoza
  • Alfaguara
  • 344 páginas
  • R$ 69,90 


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