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Estado de Minas PENSAR

Estreia de Leonardo Padura antecipa interesses e obsessões do autor cubano

Escritor fala sobre lançamento no Brasil de 'Febre de cavalos', repassa a trajetória literária e aponta o que mudou em seu país nos últimos 40 anos


10/02/2023 04:00 - atualizado 09/02/2023 23:33

Leonardo Padura, autor
Leonardo Padura, autor de "O homem que amava os cachorros" e dos livros protagonizados pelo investigador Mário Conde: estreia em 1988 com "Febre de cavalos" (foto: Divulgação)

 

O primeiro passo de uma longa viagem. Assim Leonardo Padura define “Febre de cavalos”, seu romance de estreia. Concluído em 1982 e publicado pela primeira vez em Cuba em 1988, o primeiro livro do autor de best-sellers como “O homem que amava os cachorros” chega ao Brasil pela Boitempo Editorial. “Me parece um admirável exercício juvenil, afetado por todas as dúvidas e as inocências de uma aprendizagem”, conta Padura na apresentação da edição brasileira. “Mas um livro no qual, modéstia à parte, perfilava-se o que seriam meus interesses e minhas obsessões por todos esses anos: a experiência de minha geração na Cuba contemporânea, as luzes e as escuridões da condição humana, a necessidade do amor e da amizade, os mistérios da criação artística”, complementa. 

 

Lembranças e ausências, desejos e cicatrizes, Proust e beisebol se misturam no romance da formação do jovem Andrés, que, aos 17 anos, carrega idêntica quantidade de angústias e hormônios. O amadurecimento do protagonista é narrado com o afeto e a elegância que marcam a prosa de Padura, aqui mais enxuta (pouco mais de 100 páginas) do que em romances caudalosos, como “Hereges”, e o mais recente lançamento no Brasil, “Como poeira ao vento”, ambos com mais de 400 páginas. “Na época, era o romance de iniciação de um escritor e um personagem, nesse caso o Andrés”, conta o cubano em entrevista ao Pensar do Estado de Minas. “Eu não sabia muitas coisas na época, mas tinha algumas intuições. Por exemplo: para escrever bem, você tem que ter não só talento, mas também disciplina, e essa tem sido a minha estratégia até hoje”, destaca.

 

Nascido em 1955, Leonardo Padura Fuentes imortalizou na tetralogia “Estações Havana” um dos investigadores mais conhecidos da literatura policial contemporânea: Mario Conde, que já protagonizou nove histórias do autor. Ao preparar a nova edição de “Febre de cavalos”, Padura decidiu fortalecer o que chama de “conexão íntima” entre o romance de estreia e as primeiras aventuras de Conde. 

 

“Quando comecei a escrever o que intitularia ‘Ventos de quaresma’, ficou evidente para mim que a relação entre Mario Conde e o jovem Andrés era mais remota e profunda. (...) Permiti que Conde, cujo espírito sempre esteve flutuando neste livro, transparecesse em dois momentos decisivos do romance”, revela na apresentação. 

 

Ao Pensar, Leonardo Padura também comentou as principais mudanças que enxerga em seu país nas últimas quatro décadas. “Acho que hoje somos um pouco mais livres do que há 40 anos: pelo menos eu sou, embora o sistema permaneça o mesmo. E temos uma atitude mais crítica em relação à realidade do que tínhamos. Éramos mais crédulos, porque nem sequer tínhamos a possibilidade (possibilidade, não o direito de perceber isso) de pensar de forma diferente de como a política oficial determinava”, compara. 

 

A seguir, mais respostas do escritor cubano às perguntas formuladas a partir de trechos de “Febre de cavalos”.   

 

Na apresentação de “Febre de cavalos”, você afirma que o livro contém seus “interesses e obsessões”. Poderia dizer quais são e por que eles o acompanham?

Quando escrevi este romance, entre 1983 e 1984, tinha 28 anos e minha única experiência literária era a de ter escrito e publicado alguns contos. No começo, eu pensei que iria escrever uma história mais longa. Mas, com a escrita e reescrita, cheguei ao romance curto que foi publicado. Incluí no texto preocupações como o caráter da arte, as relações amorosas e as amizades, a realidade cubana do meu tempo e da minha geração... Não imaginava que, mais tarde, esses temas seriam componentes essenciais da minha literatura. 

 

Podemos considerar “Febre de cavalos” como o romance de formação de um escritor e um personagem?

Se enxergarmos o livro hoje, sim, pode ser assim. Na época, era o romance de iniciação de um escritor e um personagem, nesse caso o Andrés.  Nós dois começamos, eu como  romancista, ele como uma pessoa que vai da  adolescência à  juventude e que descobre coisas importantes  na  vida, sem saber,  nem ele nem eu, o quão importante é que foram essas iniciações e as consequências que elas teriam para o autor e seus personagens... porque “Febre de cavalos” acabou sendo o primeiro de uma série que já está em 14 romances. É evidente que esse treino foi necessário para aprender algo que o personagem Mario Conde repete (porque eu disse isto no ouvido dele): “Escrever (bem) nunca foi fácil”. 

 

Por que você decidiu estabelecer uma conexão entre Mario Conde e Andrés na nova edição? O que os dois personagens têm em comum um com o outro e com você?

Quando republiquei o romance, 15 anos depois da sua primeira edição, em 1988, já tinha escrito cinco romances com o personagem Mario Conde. Pareceu-me muito lógico que um dos amigos de Andrés, como é o caso de Conde, lhe tenha cutucado o ouvido em algum momento da história, e o faz no capítulo dedicado ao jogo de beisebol. Eu só tinha que colocar o nome, que sempre tinha sido Conde, na frente de um apelido... E a relação minha e de Conde já é bem conhecida: eu o uso para entender minha realidade a partir de uma perspectiva geracional e das minhas visões de mundo. De certa forma, Conde sou eu, e eu sou Conde. Embora sejamos diferentes em nossas histórias pessoais, somos semelhantes em nossas experiências geracionais. E o personagem de Andrés, por outro lado, segue uma evolução pessoal diferente. No quarto romance de Conde, quando ele já está na casa dos 30, Andrés decide sair de Cuba e nunca mais voltar...  Bem, ele não voltou até agora, talvez ele o faça em algum próximo romance de Conde. Mas ambos, cada um com sua biografia, mostram a vida de um país e dos jovens (eles não são mais jovens) de uma forma íntima e dramática... Como uma aventura vital que termina em uma derrota histórica: velhice, exílio, desencanto.

 

No início do primeiro capítulo, o personagem acorda, de um cheiro, para a “memória de sua irmã e a ausência de seu pai”. Memórias e ausências são matéria-prima para as suas histórias?

Bem, elas são matéria-prima de muita literatura. “Em busca do tempo perdido”, de Proust, é o compêndio de muitas memórias, por exemplo. E, com as ausências, montei o romance “Como poeira ao vento” (Boitempo, 2021). O passado, as perdas, as lacunas são elementos muito dramáticos e eu os uso como muitos outros escritores, colocando-os no meu contexto e com meus interesses pessoais e culturais. 

 

Em outro trecho de “Febre de cavalos”, são mencionadas “as cicatrizes de 17 anos”. Quais as cicatrizes da adolescência que permanecem até hoje?

Ah, muitas... Experiências dolorosas, como sentir medo, por exemplo. Satisfatórias, como a descoberta da sexualidade e do amor. Há alguns dias, caminhando com minha esposa pelo meu bairro, passamos juntos por um lugar que não frequentávamos e me lembrei (e contei a ela) que naquele lugar eu havia acariciado e beijado o seio de uma mulher pela primeira vez, que teria a idade da personagem de Cristina, enquanto eu era, talvez, um par de anos mais jovem que Andrés. E não esqueci. Nem se sentir envergonhado de alguma atitude lamentável, ou da alegria de ter feito uma grande jogada numa partida de beisebol... e naquele dia eles roubaram minha luva de beisebol! São muitas cicatrizes e, ao menos para mim, elas sempre me acompanham. Talvez porque, como você me perguntou antes, eu cultivo a memória, preservo e uso as recordações.

 

O que é mais fascinante, para um escritor, na dinâmica do beisebol e o que o esporte significa para o povo cubano?

O mais fascinante no beisebol é que você nunca sabe quem vai ganhar até o fim da partida.   No futebol, se um time faz 6 x 0 e o jogo entra nos minutos finais, está decidido.  No beisebol, uma pontuação de 10 x 0 na última entrada pode ser revertida e terminar 11 x 10. Isso é conhecido como “não termina até que acabe”. O mais fascinante é que cada jogada, em cada momento do jogo, do campeonato, da história do esporte, tem infinitas variações. Só quem conhece essa riqueza em profundidade entende a dinâmica essencial envolvida na tomada de uma decisão... E o beisebol, para Cuba, não é um esporte: é uma manifestação de sua cultura, ainda mais, de sua espiritualidade. Por isso, é uma paixão cheia de histórias, ídolos, conquistas e frustrações. Como acontece com o futebol para os brasileiros, para que vocês me entendam melhor. 

 

“Coelho seria um grande historiador, ele não tinha coração para mais nada.” Quando você escreveu “Febre de cavalos”, você sabia que não tinha coração para ser outra coisa senão um escritor? Gostaria de ter sido um grande historiador?

Não, eu não sabia muitas coisas na época. Mas eu tinha algumas intuições. Por exemplo: para escrever bem, você tem que ter não só talento, mas também disciplina, e essa tem sido a minha estratégia até hoje. Eu trabalho e trabalho até conseguir escrever o melhor romance que sou capaz de escrever naquele momento... Não sei se sou um grande escritor, mas tenho me esforçado para ser cada vez melhor. Sempre me desafio, tento me aprimorar, seguir o caminho mais difícil, e não o mais fácil... E, como escritor, eu também sou historiador, certo? “O homem que amava os cachorros” e “Hereges” são dois de meus romances com meticulosa pesquisa histórica.

 

Andrés recebe um conselho: “Sua vida é estudar como um transtornado, fazer algo e viver de forma independente”. Que conselho daria a um jovem de 17 anos que quer ser escritor?

Já disse isto mil vezes: saiba ler. Leia o que apontam os caminhos da boa literatura. E aprenda com quem escreve bem. Não há mais segredos, não acredito em escolas de criação literária.

 

Que mudanças você mais sentiu na Cuba de 40 anos atrás para hoje?

Uh! Essa seria uma resposta sem fim... Em Cuba, o sistema político e econômico permanece o mesmo por 60 anos: um país socialista, com um governo de partido único e uma economia centralizada. E isso cria a impressão de que as coisas mudaram pouco, e é verdade... Mas também é falso. Porque a sociedade cubana dos anos 1980 e a desses 20 anos do século 21 são muito diferentes, entre outras coisas porque o mundo mudou muito. Tão diferente quanto o mundo sem telefones celulares e a internet e o mundo com esses dois instrumentos de comunicação, conhecimento, relações humanas. Acho que hoje somos um pouco mais livres do que há 40 anos; pelo menos eu sou, embora o sistema permaneça o mesmo. E temos uma atitude mais crítica em relação à realidade do que tínhamos há 40 anos. Éramos mais crédulos porque nem sequer tínhamos a possibilidade (possibilidade, não o direito, de perceber isso) de pensar de forma diferente de como a política oficial determinava. Lembre-se de que um dos slogans revolucionários cubanos era tão radical que dizia: “Onde quer que seja, no entanto, e para o que for, comandante-chefe (Fidel Castro): Ordem!”... Obediência absoluta. Espantoso, não é?

 

O investigador Mario Conde está de volta em “Pessoas decentes”, ainda não traduzido no Brasil (a previsão é de lançamento no segundo semestre deste ano). O que o motivou a escrever outra história com o personagem?

Bem, a necessidade de contar algo mais sobre a realidade e a história cubanas... E o Conde me ajuda muito nesses esforços. Esse é um romance que se move em dois tempos, nos anos de 1910 e 2016, em Havana. Há mais crimes do que em outros dos meus trabalhos, além de personagens reais e personagens inspirados em pessoas reais... O romance foi muito bem recebido na edição original, em espanhol. Por isso, em breve, estará disponível no Brasil.

 

Para que serve um romance? Quatro décadas depois, você encontrou a resposta?

Acho que sim, mas não tenho certeza. É melhor duvidar do que acreditar absolutamente. Para mim, o romance ajuda a compreender a minha realidade, a história, as minhas obsessões... E, de alguma forma, mostrar aos leitores esses entendimentos e, talvez, ajudá-los a entender melhor suas realidades, sua história, suas obsessões, porque tento comunicar o meu entendimento a partir de um pertencimento que é universal: a condição humana. O romance tem a capacidade de mostrar a vida e os sentimentos a partir de uma perspectiva própria, diferentemente de outras artes e ciências, e essa qualidade é o que define a sua relevância.  

 

 

Trecho de “Febre de cavalos”, de Leonardo Padura, com tradução de Monica Stahel

 

“O quarto é um refúgio, uma pele mais ampla e resistente, marcada por todas as cicatrizes de seus dezessete anos. Andrés adora aquelas paredes que oferecem o mesmo tom verde da luz e compõem uma harmonia delicada, ideal para aplacar os nervos nos dias difíceis. Enfeitara-o com fotos e cartazes: sobre a cama está pendurada uma imagem em que Fidel e Camilo ostentam o traje do time Barbudos. Ele sente uma estranha atração por aquela imagem – também presente de seu tio que trabalha no Inder -, porque Camilo inclinava-se para Fidel a fim de lhe dizer algo que ele sempre tentava imaginar. Os dois estão muito sérios. Durante anos havia construído mil enredos para aquela conversa, uns sobre jogo de beisebol, outros sobre assuntos mais importantes. Talvez a foto o atraísse porque podia construir a conversa e sentir-se participante de um segredo radical, talvez esquecido, que aquele homem tão querido levara para uma tumba perdida no fundo do mar.”

 

“Febre de cavalos”

 

 

  • Leonardo Padura
  • Tradução de Monica Stahel
  • Boitempo editorial
  • 128 páginas
  • R$ 47  

 


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