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Estado de Minas PENSAR

Coletânea de poemas de André Dick se inscreve no antilirismo

Livro apresenta versos criados como uma reação à pandemia do coronavírus


03/02/2023 04:00 - atualizado 03/02/2023 20:40

Escritor André Dick
O gaúcho André Dick, autor de "Neste momento" (foto: André Dick)
Anelito de Oliveira*

Especial para o EM

 

A coletânea “Neste momento”, do gaúcho André Dick, é um dos volumes de verso mais complexos provocados pela pandemia do coronavírus. O demonstrativo (“este”) demarca uma objetivação do tempo que é sugestiva de uma relação racionalizante entre o sujeito e o seu entorno, a circunstância, o seu tempo. À medida que se aproxima do tempo, o sujeito o delimita, recorta-o para, assim, examiná-lo com agudeza: “este” momento, não “esse”, “aquele” etc. Esse movimento cognitivo é impulsionado muito mais por elementos externos, conscientes, que internos, inconscientes. “Neste momento” se inscreve na tradição do que se convencionou chamar no Brasil, a partir de João Cabral, de “antilirismo” em oposição à poesia sentimental, que tem no Romantismo sua referência moderna.

 

Evidentemente idiossincrático – o lírico não se restringe, desde sua origem grega, à emoção, tampouco ao eu –, o horizonte “antilírico” ganhou contornos radicais com a Poesia Concreta e os demais movimentos de Vanguarda dos anos 1950 a 1970, como “Praxis”, “Poesia semiótica” e “Poema processo”, até atingir dimensões extraordinárias com poetas como Augusto de Campos, Sebastião Uchoa Leite, Régis Bonvicino e mesmo Carlito Azevedo, de “Sob a noite física”. Nos anos 1990, a obra poética do multiartista Arnaldo Antunes, que vinha se processando desde os anos 1980 com livros como “Psia” e “Tudos”, passa a se destacar como referência de desdobramentos produtivos do “antilirismo”. O minimalismo, o nonsense, a informalidade, a leveza, a redundância e o ludismo são alguns desses desdobramentos que destituíram o “antilirismo” de uma aura sóbria, séria e não raro sombria. 

 

Com o próprio ex-Titãs apresentando “Neste momento”, que também traz posfácio assinado por outro grande nome da poesia contemporânea no país vinculado à chamada “poesia de invenção”, o mineiro Ronald Polito, vemo-nos instados a refletir sobre o que nesse livro é realmente “de” André Dick, constitui a “particularidade”, diria Lukács, de sua experiência estética. E, nesse caso, não são os textos, os produtos, em primeiro lugar, mas seu contexto de produção que se impõe como um caminho hermenêutico muito fértil. Claro que contextos não justificam textos, tampouco podem salvá-los, mas são os próprios textos que se acusam como insuficientes em si mesmos. Essa insuficiência, esse limite, é uma particularidade que se apresenta na própria linguagem quando esta chega ao extremo, tentando dizer além do possível, como os Simbolistas experienciaram e Wittgenstein problematizou, em termos de filosofia da linguagem, no seu “Tractatus logico-philosophicus” (1921). 

 

O contexto de produção do que se encontra em “Neste momento” certamente antecede a pandemia, mas esta é sua referência escatológica, digamos, que diz respeito à finalidade da poesia. Assim, a quê e a quem a poesia responde num momento extremo, antropocênico, em meio à devastação da terra, num tempo de partidarizações absurdas? O poeta, cujo senso de cuidado com a linguagem já era conhecido de três livros anteriores (“Grafias”, “Papéis de parede” e “Calendário”) e traduções de Mallarmé, responde ao momento que recorta no tempo, do qual se aproxima, e a si mesmo, o sujeito que os próprios poemas constituem. 

 

 

 

Quatro seções

 

Suas respostas se organizam em quatro seções: “Infância”, “Caos”, “Casa em mudança” e “Mundo mundo”. O timbre memorialístico dessas respostas, seu elo fundamental com o vivido, insinua-se já numa epígrafe bilíngue na qual uma dupla estrangeiridade ressoa: “I found the lines to a childhood memory / Au revoir Simone”, isto é, “Achei os versos para uma recordação da infância / Até logo, Simone”. Sutilmente, o sujeito confessa o desejo cultivado de reatar uma relação consigo mesmo, com aquele que ele foi no passado, na “primeiridade” dos sentidos, conforme o ponto de vista peirciano, algo tornado possível pela linguagem poética. A confissão paradoxalmente não pode ser enunciada em língua portuguesa, na língua materna do poeta.

 

As quatro partes do livro são fundamentalmente complementares, revelando uma mesma busca de equilíbrio, de compreensão de um objeto: o sujeito do momento objetivado. A proximidade estabelecida entre o poeta e o momento, entre o rosto (permanente) e a máscara (provisória), resulta na desvelação de um sujeito desprovido do caráter conflituoso tão alardeado nos debates sobre o contemporâneo. Sem dúvida, disso deriva a delicadeza destacada por Antunes e Polito como traço de “Neste momento”, versos como no poema sem título de abertura: “Não se sabe até quando / Um suspiro suspire / Suspirando”. 

 

Essa escrita delicada evidencia o contexto pandêmico em que a primazia do sujeito sobre o social, do indivíduo sobre o coletivo, tornou-se um caso de “violência ética”, para evocar Judith Butler de um livro muito instigante para pensarmos as aporiss da Ética na vida social contemporânea, que é o “Relatar a si mesmo” (2015). Em nenhum momento a pandemia é tratada de modo claro, o poeta não incorre em arroubos de “política explícita”, como Polito frisa com toda razão, mas é nos seus movimentos enunciativos delicados que se performa um processo resiliente de recolha e organização de dados capazes de dar sentido não à sua vida apenas, mas ao mundo onde essa vida acontece. 

 

Predomina em “Neste momento” uma espécie de dinâmica do vir-a-ser na qual o sentido é talhado no nonsense, natureza-morta é convertida em natureza viva, uma incitação ao encantamento perdido das coisas no tempo presente pela vivência da primeiridade. Em “Estações”, um dos poemas da primeira parte, o poeta escreve: “Quem me dera / O botão no linho / A linha do blusão / O coração de flor amena / A lágrima que não esquenta / A água que vai quente na pia / O retrato da família reunida”. Esse poema, centrado no desejo de encantamento, é arrematado com o seguinte terceto: “Quem me dera / O sol no sol / Todos aqui são felizes”. 

 

Esse “aqui” é, na infância, no tempo passado, que a objetivação do momento, a proximidade entre o rosto e a máscara, permite compreender. A infância, a rigor, não é totalmente dizivel, configura-se mais como “plano de imanência”, em termos deleuzianos, como metáfora de possibilidade do paradoxal, da sustentabilidade do ilógico – e o mundo de Lewis Carroll comparece ali no poema “Humpty Dumpty”. A infância autoriza, especialmente, um movimento cognitivo que constitui em si uma crítica aos excessos humanos, de que pandemias são exemplos:  o protagonismo de não humanos, bichos, plantas, coisas, fenômenos naturais. 

 

Isso que vem sendo tratado no campo teórico como “animalidade”, anteriormente conhecido como “bestiário”, textos sobre bichos, é um dos veios notáveis do livro. De modo direto, “Neste momento” aborda bichos em três de suas quatro partes: “Zoografia”, “Lobo” (Infância), “Fábula”, “Caramujo” (Caos), “Tartaruga”, “Borboleta”, “Urso polar”, “Zoo” (Mundo Mundo). A abordagem em si, bem como o modo como esses poemas são compostos – tudo ressoa o Arnaldo Antunes de “Nome”, o Régis Bonvicino de “Num zoológico de letras” e Wilson Bueno de vários trabalhos –, não são mais relevantes que o horizonte antropocênico, dos impactos socioambientais, que os move fundamentalmente. 

 

Da ciência para a poesia novamente, vejamos a insinuação discreta de uma sensibilidade antropocênica num poema como “Fábula”, sugestivamente posicionado na seção “Caos”: “Ursos acompanham de perto / o calor do globo. / Só na fábula tem lobos. / Na areia, uma tartaruga / embora sem casco. / Dentro do álbum, / cigarras de Esopo”. O poema nos coloca em face de uma distopia que se contrapõe à utopia característica das fábulas, limita-se a narrar o que os “media” tem informado diariamente. Na narrativa modulada pelos recursos da lírica – ritmo, elipse, contenção etc –, ressalta-se uma criticidade sutil, alcançada, sem dúvida, a partir do lugar de leitor sensível do texto-mundo que o poeta ocupa. 

 

Esse lugar fica mais claro num poema que, de certo modo, complementa o citado “Fábula”, que é “Urso polar”, posicionado também muito sugestivamente na seção “Mundo mundo”, com a qual o volume se fecha. Vejamos estes versos dos quartetos 1, 2 e 3 : “Eu recebo notícias vindas / de algum lugar ao norte / o lugar mais frio que conheço / plantas (-) quase geométricas capazes / de interceder dois polos, / o globo terrestre / manifesto sob as patas (-) de um urso-polar. / Quando ele pisa mais forte, / sinto em meus pés / o mundo rachando”. São versos que desenham o próprio movimento de apreensão da realidade antropocênica pelo poeta através do noticiário e seu impacto sobre sua sensibilidade. 

 

Ao final desse poema, encontramos uma identificação entre poeta e urso que ilumina de modo cabal todo o processo criativo que encontramos em “Neste momento”, que constitui o seu “Geist”, o seu espírito, ao mesmo tempo em que traduz o nosso “Zeitgeist”, o espírito do tempo antropocênico: “sou como o urso / quase naufragando / na encosta desaparecendo / entre as trevas do golfo, bem devagar.”  O poeta-urso é a expressão de uma condição bastante frágil, resultante do impacto de elementos de vária ordem – climática, política, econômica, sanitária, cultural etc. Seus poemas são, sobretudo, o movimento de uma consciência estética, pautada pelo ideal de beleza, que cabe ao poeta especialmente diante de um mundo bruto demais.

 

 

*Anelito de Oliveira é doutor em literatura brasileira pela USP e pós-doutor em teoria literária pela Unicamp, publisher da revista digital Sphera “Habitações do encantado”, autor de inúmeros livros em gêneros discursivos diversos e professor na Faculdade de Letras da UFMG

 

“Neste momento”

 

  • André Dick
  • Kotter Editorial
  • 140 páginas
  • R$ 44 

 

 

 

‘‘Poemas’’

 

Neste momento

Em que tudo

Está passando

E não se sabe

Se o tempo

Acontece quando

Talvez esteja esperando

O ponteiro apontar

Para a hora

Que falta a fim de chegar

O vento soprando

Alguém sozinho

Na rua andando

O ponteiro fique por si só

De um lado para o outro

Vagando

Não se sabe até quando

Um suspiro suspire

suspirando 

 

 

 

‘‘TARTARUGA’’

 

A tartaruga marinha

Tarda mas não falha

A lontra faz sombra

A baleia de Jonas

Os pinguins no Polo Ártico

Do gelo para o iglu

No fim ou começo do mundo

Os golfinhos na beira da praia

O arco-íris se espalha

Tarda mas não falha

O leão-marinho ruge do mar

Onde a chuva cai, o gelo estala

Onde a estrela está gasta

A vida vem e arremata

Os polvos e a orca

Da baleia com a água que jorra

Do alto e a vida que se espalha

Na água e nunca para

Uma vida marinha muito prática

Onde o sol nasce e a noite chega

De forma matemática

Calculando os ângulos da subida

E descida da maré

A vida prospera, é o que é

Tarda, mas não falha

 

 

 

‘‘Estações’’

 

Quem me dera

O inverno no inverno

O outono no verão

O outono no inverno

O sol na primavera

 

Quem me dera

O botão no linho

A linha do blusão

O coração de flor amena

A lágrima que não esquenta

A água que vai quente na pia

O retrato da família reunida

 

Quem me dera

O filho do filho

O pai do pai

A mãe da mãe

Como um brilho

 

Ver uma porta se abrir

O sol entrar

A árvore criar raízes

 

Quem me dera

O sol no sol

Todos aqui são felizes

 

 

 

“Estamos”

 

Estamos todos prontos

Mas não para agora

Estamos todos soltos

Do lado de dentro

Estamos todos chegando

Sem poder ir embora

Estamos todos livres

Mas só em pensamento

Estamos todos sorrindo

Como um sonho na memória

Estamos todos na contramão

E mesmo assim vai ter nascimento

Estamos todos no mesmo barco

Pedindo pra chegar à costa

Estamos atrasando o relógio 

Esperando chegar a tempo

Estamos plantando um tijolo

Tendo em mente uma flora

Estamos sempre inquietos

Pedindo pros outros serem atentos

Estamos todos aflitos

E logo alguém semeia discórdia

Estamos todos parados

Olhando no mesmo espelho

Estamos todos esperando

Que nada disso faça história

Estamos todos olhando a parede

Com um belo olhar sereno

 


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