Anelito de Oliveira*
Especial para o EM
A coletânea “Neste momento”, do gaúcho André Dick, é um dos volumes de verso mais complexos provocados pela pandemia do coronavírus. O demonstrativo (“este”) demarca uma objetivação do tempo que é sugestiva de uma relação racionalizante entre o sujeito e o seu entorno, a circunstância, o seu tempo. À medida que se aproxima do tempo, o sujeito o delimita, recorta-o para, assim, examiná-lo com agudeza: “este” momento, não “esse”, “aquele” etc. Esse movimento cognitivo é impulsionado muito mais por elementos externos, conscientes, que internos, inconscientes. “Neste momento” se inscreve na tradição do que se convencionou chamar no Brasil, a partir de João Cabral, de “antilirismo” em oposição à poesia sentimental, que tem no Romantismo sua referência moderna.
Evidentemente idiossincrático – o lírico não se restringe, desde sua origem grega, à emoção, tampouco ao eu –, o horizonte “antilírico” ganhou contornos radicais com a Poesia Concreta e os demais movimentos de Vanguarda dos anos 1950 a 1970, como “Praxis”, “Poesia semiótica” e “Poema processo”, até atingir dimensões extraordinárias com poetas como Augusto de Campos, Sebastião Uchoa Leite, Régis Bonvicino e mesmo Carlito Azevedo, de “Sob a noite física”. Nos anos 1990, a obra poética do multiartista Arnaldo Antunes, que vinha se processando desde os anos 1980 com livros como “Psia” e “Tudos”, passa a se destacar como referência de desdobramentos produtivos do “antilirismo”. O minimalismo, o nonsense, a informalidade, a leveza, a redundância e o ludismo são alguns desses desdobramentos que destituíram o “antilirismo” de uma aura sóbria, séria e não raro sombria.
Com o próprio ex-Titãs apresentando “Neste momento”, que também traz posfácio assinado por outro grande nome da poesia contemporânea no país vinculado à chamada “poesia de invenção”, o mineiro Ronald Polito, vemo-nos instados a refletir sobre o que nesse livro é realmente “de” André Dick, constitui a “particularidade”, diria Lukács, de sua experiência estética. E, nesse caso, não são os textos, os produtos, em primeiro lugar, mas seu contexto de produção que se impõe como um caminho hermenêutico muito fértil. Claro que contextos não justificam textos, tampouco podem salvá-los, mas são os próprios textos que se acusam como insuficientes em si mesmos. Essa insuficiência, esse limite, é uma particularidade que se apresenta na própria linguagem quando esta chega ao extremo, tentando dizer além do possível, como os Simbolistas experienciaram e Wittgenstein problematizou, em termos de filosofia da linguagem, no seu “Tractatus logico-philosophicus” (1921).
O contexto de produção do que se encontra em “Neste momento” certamente antecede a pandemia, mas esta é sua referência escatológica, digamos, que diz respeito à finalidade da poesia. Assim, a quê e a quem a poesia responde num momento extremo, antropocênico, em meio à devastação da terra, num tempo de partidarizações absurdas? O poeta, cujo senso de cuidado com a linguagem já era conhecido de três livros anteriores (“Grafias”, “Papéis de parede” e “Calendário”) e traduções de Mallarmé, responde ao momento que recorta no tempo, do qual se aproxima, e a si mesmo, o sujeito que os próprios poemas constituem.
Quatro seções
Suas respostas se organizam em quatro seções: “Infância”, “Caos”, “Casa em mudança” e “Mundo mundo”. O timbre memorialístico dessas respostas, seu elo fundamental com o vivido, insinua-se já numa epígrafe bilíngue na qual uma dupla estrangeiridade ressoa: “I found the lines to a childhood memory / Au revoir Simone”, isto é, “Achei os versos para uma recordação da infância / Até logo, Simone”. Sutilmente, o sujeito confessa o desejo cultivado de reatar uma relação consigo mesmo, com aquele que ele foi no passado, na “primeiridade” dos sentidos, conforme o ponto de vista peirciano, algo tornado possível pela linguagem poética. A confissão paradoxalmente não pode ser enunciada em língua portuguesa, na língua materna do poeta.
As quatro partes do livro são fundamentalmente complementares, revelando uma mesma busca de equilíbrio, de compreensão de um objeto: o sujeito do momento objetivado. A proximidade estabelecida entre o poeta e o momento, entre o rosto (permanente) e a máscara (provisória), resulta na desvelação de um sujeito desprovido do caráter conflituoso tão alardeado nos debates sobre o contemporâneo. Sem dúvida, disso deriva a delicadeza destacada por Antunes e Polito como traço de “Neste momento”, versos como no poema sem título de abertura: “Não se sabe até quando / Um suspiro suspire / Suspirando”.
Essa escrita delicada evidencia o contexto pandêmico em que a primazia do sujeito sobre o social, do indivíduo sobre o coletivo, tornou-se um caso de “violência ética”, para evocar Judith Butler de um livro muito instigante para pensarmos as aporiss da Ética na vida social contemporânea, que é o “Relatar a si mesmo” (2015). Em nenhum momento a pandemia é tratada de modo claro, o poeta não incorre em arroubos de “política explícita”, como Polito frisa com toda razão, mas é nos seus movimentos enunciativos delicados que se performa um processo resiliente de recolha e organização de dados capazes de dar sentido não à sua vida apenas, mas ao mundo onde essa vida acontece.
Predomina em “Neste momento” uma espécie de dinâmica do vir-a-ser na qual o sentido é talhado no nonsense, natureza-morta é convertida em natureza viva, uma incitação ao encantamento perdido das coisas no tempo presente pela vivência da primeiridade. Em “Estações”, um dos poemas da primeira parte, o poeta escreve: “Quem me dera / O botão no linho / A linha do blusão / O coração de flor amena / A lágrima que não esquenta / A água que vai quente na pia / O retrato da família reunida”. Esse poema, centrado no desejo de encantamento, é arrematado com o seguinte terceto: “Quem me dera / O sol no sol / Todos aqui são felizes”.
Esse “aqui” é, na infância, no tempo passado, que a objetivação do momento, a proximidade entre o rosto e a máscara, permite compreender. A infância, a rigor, não é totalmente dizivel, configura-se mais como “plano de imanência”, em termos deleuzianos, como metáfora de possibilidade do paradoxal, da sustentabilidade do ilógico – e o mundo de Lewis Carroll comparece ali no poema “Humpty Dumpty”. A infância autoriza, especialmente, um movimento cognitivo que constitui em si uma crítica aos excessos humanos, de que pandemias são exemplos: o protagonismo de não humanos, bichos, plantas, coisas, fenômenos naturais.
Isso que vem sendo tratado no campo teórico como “animalidade”, anteriormente conhecido como “bestiário”, textos sobre bichos, é um dos veios notáveis do livro. De modo direto, “Neste momento” aborda bichos em três de suas quatro partes: “Zoografia”, “Lobo” (Infância), “Fábula”, “Caramujo” (Caos), “Tartaruga”, “Borboleta”, “Urso polar”, “Zoo” (Mundo Mundo). A abordagem em si, bem como o modo como esses poemas são compostos – tudo ressoa o Arnaldo Antunes de “Nome”, o Régis Bonvicino de “Num zoológico de letras” e Wilson Bueno de vários trabalhos –, não são mais relevantes que o horizonte antropocênico, dos impactos socioambientais, que os move fundamentalmente.
Da ciência para a poesia novamente, vejamos a insinuação discreta de uma sensibilidade antropocênica num poema como “Fábula”, sugestivamente posicionado na seção “Caos”: “Ursos acompanham de perto / o calor do globo. / Só na fábula tem lobos. / Na areia, uma tartaruga / embora sem casco. / Dentro do álbum, / cigarras de Esopo”. O poema nos coloca em face de uma distopia que se contrapõe à utopia característica das fábulas, limita-se a narrar o que os “media” tem informado diariamente. Na narrativa modulada pelos recursos da lírica – ritmo, elipse, contenção etc –, ressalta-se uma criticidade sutil, alcançada, sem dúvida, a partir do lugar de leitor sensível do texto-mundo que o poeta ocupa.
Esse lugar fica mais claro num poema que, de certo modo, complementa o citado “Fábula”, que é “Urso polar”, posicionado também muito sugestivamente na seção “Mundo mundo”, com a qual o volume se fecha. Vejamos estes versos dos quartetos 1, 2 e 3 : “Eu recebo notícias vindas / de algum lugar ao norte / o lugar mais frio que conheço / plantas (-) quase geométricas capazes / de interceder dois polos, / o globo terrestre / manifesto sob as patas (-) de um urso-polar. / Quando ele pisa mais forte, / sinto em meus pés / o mundo rachando”. São versos que desenham o próprio movimento de apreensão da realidade antropocênica pelo poeta através do noticiário e seu impacto sobre sua sensibilidade.
Ao final desse poema, encontramos uma identificação entre poeta e urso que ilumina de modo cabal todo o processo criativo que encontramos em “Neste momento”, que constitui o seu “Geist”, o seu espírito, ao mesmo tempo em que traduz o nosso “Zeitgeist”, o espírito do tempo antropocênico: “sou como o urso / quase naufragando / na encosta desaparecendo / entre as trevas do golfo, bem devagar.” O poeta-urso é a expressão de uma condição bastante frágil, resultante do impacto de elementos de vária ordem – climática, política, econômica, sanitária, cultural etc. Seus poemas são, sobretudo, o movimento de uma consciência estética, pautada pelo ideal de beleza, que cabe ao poeta especialmente diante de um mundo bruto demais.
*Anelito de Oliveira é doutor em literatura brasileira pela USP e pós-doutor em teoria literária pela Unicamp, publisher da revista digital Sphera “Habitações do encantado”, autor de inúmeros livros em gêneros discursivos diversos e professor na Faculdade de Letras da UFMG
“Neste momento”
- André Dick
- Kotter Editorial
- 140 páginas
- R$ 44
‘‘Poemas’’
Neste momento
Em que tudo
Está passando
E não se sabe
Se o tempo
Acontece quando
Talvez esteja esperando
O ponteiro apontar
Para a hora
Que falta a fim de chegar
O vento soprando
Alguém sozinho
Na rua andando
O ponteiro fique por si só
De um lado para o outro
Vagando
Não se sabe até quando
Um suspiro suspire
suspirando
‘‘TARTARUGA’’
A tartaruga marinha
Tarda mas não falha
A lontra faz sombra
A baleia de Jonas
Os pinguins no Polo Ártico
Do gelo para o iglu
No fim ou começo do mundo
Os golfinhos na beira da praia
O arco-íris se espalha
Tarda mas não falha
O leão-marinho ruge do mar
Onde a chuva cai, o gelo estala
Onde a estrela está gasta
A vida vem e arremata
Os polvos e a orca
Da baleia com a água que jorra
Do alto e a vida que se espalha
Na água e nunca para
Uma vida marinha muito prática
Onde o sol nasce e a noite chega
De forma matemática
Calculando os ângulos da subida
E descida da maré
A vida prospera, é o que é
Tarda, mas não falha
‘‘Estações’’
Quem me dera
O inverno no inverno
O outono no verão
O outono no inverno
O sol na primavera
Quem me dera
O botão no linho
A linha do blusão
O coração de flor amena
A lágrima que não esquenta
A água que vai quente na pia
O retrato da família reunida
Quem me dera
O filho do filho
O pai do pai
A mãe da mãe
Como um brilho
Ver uma porta se abrir
O sol entrar
A árvore criar raízes
Quem me dera
O sol no sol
Todos aqui são felizes
“Estamos”
Estamos todos prontos
Mas não para agora
Estamos todos soltos
Do lado de dentro
Estamos todos chegando
Sem poder ir embora
Estamos todos livres
Mas só em pensamento
Estamos todos sorrindo
Como um sonho na memória
Estamos todos na contramão
E mesmo assim vai ter nascimento
Estamos todos no mesmo barco
Pedindo pra chegar à costa
Estamos atrasando o relógio
Esperando chegar a tempo
Estamos plantando um tijolo
Tendo em mente uma flora
Estamos sempre inquietos
Pedindo pros outros serem atentos
Estamos todos aflitos
E logo alguém semeia discórdia
Estamos todos parados
Olhando no mesmo espelho
Estamos todos esperando
Que nada disso faça história
Estamos todos olhando a parede
Com um belo olhar sereno