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Estado de Minas PENSAR

Jacques Fux aborda o Holocausto em 'Herança', seu novo romance

A partir dos diários de crianças que estiveram em campos de concentração, autor mineiro entrelaça literatura e história


02/12/2022 04:00 - atualizado 01/12/2022 23:22

Jacques Fux
Jacques Fux conta que o novo livro nasce de pesquisas de pós-doutorado: "Trabalhei na Universidade de Harvard com o trauma geracional" (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Um diário da guerra escrito por Sarah K. entre 2 de agosto de 1939 - véspera da invasão da Polônia por Adolf Hitler — e 28 de janeiro de 1945, — um dia depois de o Exército Vermelho libertar Auschwitz. Sessões de análise da filha de Sarah, Clara k., nascida em 1949, no Brasil, que cresce sob o silêncio cúmplice do trauma, sem informações sobre o passado. As anotações da neta, Lola, que vem ao mundo em 1984, no Recife, e quando adulta, já acadêmica, empreende uma pesquisa histórica que mira o reencontro com o inconsciente coletivo da violência nazista.  Vozes de três gerações de mulheres, —para quem o tempo e o espaço não se curvaram ao Holocausto—, dirigidas à recém-nascida bisneta, Luiza, na esperança de um futuro de libertação pela palavra.

Filha e neta não estiveram fisicamente lá. Mas seguem reféns do Holocausto. “Herança. Epigenética. Ratos de laboratório foram treinados para temer um certo cheiro muito parecido com cerejas e amêndoas (...) Apesar de nunca terem sido expostos a esses odores, a prole sentia na pele, na carne, no olfato, toda a memória traumática. A terceira geração de ratas — nós, as “netas” — herdou essa dor (...) Eu: espelho de minha mãe e de minha avó. Reflexos de Auschwitz”, constata Lola, neta pesquisadora da Shoah, que leva o nome de batismo da bisavó, e só compreende a memória coletiva tardiamente, entre silêncios, vazios e distanciamento que bloqueiam o relacionamento com a mãe e com a avó. 

Literatura, história, legado geracional, vivências que transbordam da Segunda Guerra Mundial se entrelaçam em “Herança” (Maralto), a mais recente obra do escritor, ensaísta e tradutor Jacques Fux, que será lançada neste sábado, 3 de dezembro, às 11h na Quixote. O livro se fundamenta numa pesquisa, ao longo de seis anos, em diários de crianças que estiveram em campos de concentração. Traduzido para o italiano, tem lançamento previsto para a Feira Literária Internacional de Veneza, em março de 2023. “Herança” traz posfácio de Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), ele próprio de família imigrante alemã, terceira geração afetada pelos acontecimentos da guerra: o avô desapareceu em Gomel, quando o exército preparava-se para atacar Moscou; e o pai até os 15 anos viveu sob escombros da guerra, sob o revide dos bombardeios dos aliados sobre a Alemanha. 

Seguir na dor do silêncio repassando o mesmo legado traumático à filha Luiza, bisneta do horror, é apavorante para Lola. “Essa minha tentativa de salvar Luiza do nosso passado é inútil. Reproduzo os erros de minha mãe e de minha avó”. Sobrevivente do nazismo, que interromperia a promessa de uma adolescência romântica, Sarah, carrega a culpa por ter escapado do genocídio que exterminou a sua família.  Em homenagem a Clara, a irmã assassinada em Auschwitz, Sarah batiza a filha, que cresce sem qualquer informação sobre o passado materno. Nas anotações de Lola: “Ela (Sarah) vivenciava uma dívida inesgotável com sua memória naufragada. Sua geração sentia culpa. Muita culpa. Uma culpa que não cabia em si. Uma culpa diária por estar viva. Por ser a única e talvez a última a confinar um segredo incapaz de compartilhar. Minha avó sentia uma culpa tão grande, tão vívida e tão árida que irrompia em seu corpo, em sua falta diária de ar. A culpa estava lá, em seu braço e em seu ventre, tatuada. Indelével, nos assolando como uma sina. Uma sina quimérica que tivemos que suportar. Eu prometi que não passaria esse legado para a frente”, constata e prenuncia Lola. 

 “Herança” é um romance que gira em torno de personagens ficcionais em um contexto histórico concreto de atrocidades, que longe de constituir um trauma individual, também é um legado que toca toda a descendência, incorporado à cultura, o que o torna coletivo.  Ao paralisar a vítima, ao silenciá-la pela vergonha do que sofreu, o legado se reveste em lacuna, em vazio, em recalque que cristaliza a violência jamais enunciada. E se não é dita, se não é elaborada, perspectiva de superação, não haverá.  Lola encontra, na pesquisa e na reflexão, a ruptura do pacto de silêncio com as raízes do horror. Recupera o fio da narrativa interrompido: “Escrevo, reflito e testemunho. Busco evitar o sofrimento imposto por uma realidade que, paradoxalmente, é e não é minha. Busco um processo de integração. De conjunção. De compreensão. Busco um intercâmbio — por palavras — entre mães e filhas. Nós — Sarah, Clara, Lola e Luiza — podemos tecer uma narrativa comum. Reconstituída. Reconstruída. Reedificada.”

Nascida em 1926, em Lódz, na Polônia, — lugar de memória “onde até as cinzas desapareceram, o romance se inicia com as anotações de Sarah K., filha de Lola L. e Heniusem, família judia. Aos 14 anos, Sarah vai ter a vida abruptamente afetada pela invasão da Polônia por Hitler, que marca o início de uma guerra pan-europeia, que, combinada com a invasão japonesa da China em 1937 e a Guerra do Pacífico em 1941, convergiria para o conflito global conhecido como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para os poloneses judeus, abria-se a porta do inferno. Em 1943, confinadas no Gueto de Lódz, Sarah e sua irmã Clara, assim como as outras crianças, foram separadas das mães e enviadas para Chelmno e Auschwitz. “E foi sobre essa história encardida em sangue que as invenções da minha mãe e as minhas começaram a florear. Nosso trauma foi recebido. E é a isso, egoisticamente à transmissão do trauma, que eu devoto meus dias”, anota Lola. É um caminho de reconstrução e de enfrentamento contra o juízo final nazista, conforme justifica a filha Clara. Mas também, de retorno, registra a analista que a escuta discorrer sobre a sua infância, memórias e dores.  


A libertação russa

O dia é 28 de janeiro de 1945. Tal é o marcador histórico que introduz a memória da trama, um dia depois de o Exército Vermelho libertar Auschwitz, o maior e mais aterrador campo de extermínio dos nazistas, onde, no auge do holocausto, em 1944, foram assassinadas seis mil pessoas por dia. No diário de Sarah: “Os russos enfim chegaram a Auschwitz. Tarde demais. Vagamos aturdidas pelas vielas e dejetos de um lugar massacrado. Cadavéricas, silenciosas. Algumas de nós ainda respiram engastadas. Olhares perdidos. Não somos mais capazes de nos espantar. Nem mesmo de chorar. Chora-se por subsistir algum sentimento de tristeza, saudade, dor, esperança, alegria, busca por alívio ou reparação. E nada (tudo) jaz.”  

Imigrante no Brasil, carregando pela vida um sotaque que marca a infância da filha Clara, a sobrevivente Sarah lida com o trauma em silêncio, obcecada pela rotina e pela ordem, pela limpeza e austeridade, como forma de controlar o próprio destino e o da filha Clara. “Sempre foi uma estranha, muda e aleijada em gestos de carinho”, “fria”, “distante”, “tirânica” e “repreensiva”, são adjetivos utilizados por Clara em sessões de análise para descrever a mãe. A filha só alcançou o significado daqueles números tatuados no braço de Sarah aos 12 anos, por ocasião do julgamento em Jerusalém dos crimes contra a humanidade cometidos por Otto Adolf Eichmann — um dos principais responsáveis pela deportação dos judeus europeus durante o holocausto. Clara revela à analista: “Ouvi pela primeira vez o nome Auschwitz aos doze anos. Vivia no interior de São Paulo e começaram a falar de um julgamento em Jerusalém. Eichmann havia sido capturado em Buenos Aires e estava sendo julgado pelos seus crimes. E vários sobreviventes começaram a contar as suas histórias. Campos terríveis, lugares inimagináveis e crueldades impensadas eram narrados com naturalidade. Uma colega de sala, que já não tenho a menor lembrança de seu rosto ou de sua voz — mas que aparece em pesadelos com trajes de uma mercadora da morte inteiramente tatuada e que, ao abrir a boca, reflete a minha imagem desfigurada em seus dentes podres —, me contou que minha mãe havia estado em um desses campos de concentração.”

Mas Clara não é a única a arquivar em camadas profundas os silêncios e a frieza materna, expressões que encobrem o permanente alerta contra o inimigo oculto, o pânico contra o bote fatal. Inconscientemente, Clara reproduz comportamento semelhante, legando a Lola os espasmos do trauma coletivo. Lola registra: “Minha mãe sempre se queixava da frieza e do silêncio de minha avó. Elas nunca conversaram sobre os sentimentos, os acidentes e as desilusões da vida. Nunca falaram sobre o amor, sobre as descobertas e mudanças do corpo, sobre os encantos e encontros. Sangue — mesmo sendo a seiva que promete a vida — era encarado com pavor. Resgate contínuo de um pesadelo corrente. Eu também sempre me queixava da frieza de minha mãe. Das suas loucuras e das nossas privações. Ela vivia se metendo na minha vida, interferindo na escola, e me protegendo de mim e das minhas amigas. A gente vivia se mudando. Nasci e vivi um tempo no Recife. Tempo suficiente para ser conhecida como “a menina nó cego” ou a “tabacuda”. Eu me sentia e era vista como estranha. Não sabia das minhas origens, mas as marcas deixadas pela minha mãe não me permitiam viver sem vestígios. Três gerações distantes, atadas em silêncios.”

Escrever outro final é possível, considera o psicanalista Christian Dunker, no posfácio do romance. “Proteger a memória das vítimas, passar da memória somática para a memória reflexiva, preservar os ‘momentos insolúveis’ parecem ser condições necessárias para preservar um ‘desejo de produzir um outro final’, tão importante para a elaboração subjetiva deste trauma”, afirma ele. Dunker prossegue, assinalando ser necessárias ao menos três gerações para que as pessoas escapem da posição de vítimas para a de sobreviventes e de sobreviventes, para testemunhas. “Antes disso há sempre uma espécie de iminência de que ‘aquilo’ pode voltar a acontecer, a qualquer momento. Isso que tão bem se apresenta neste livro em torno da cultura familiar do medo”, sublinha Dunker. 

Trecho de “Herança”

“Traumas e vidas resultantes de catástrofes são eventos que jamais puderam ser elaborados. Minha mãe não elaborou. Minha avó, tampouco. Leram histórias e diários para tentar se encontrar. E reelaborar. Eu também li e estudei esses diários. Diários reais. Diários quase esquecidos e queimados. Diários encontrados por acaso. O diário de Dawid Sierakowiak foi encontrado cinco anos depois da libertação de Lódz pelos russos. Por sorte, o gentio Waclaw Szkudlarek voltou para casa após o término da guerra e viu pilhas de papéis sobre a mesa relatando detalhes e reflexões de um jovem alpinista, poeta, tradutor poliglota e marxista. Notas sobre o dia a dia de uma das mais terríveis invenções da racionalidade alemã. Diários de sentimentos, sensações e calvários que mostram a natureza real e absurda do sofrimento humano. Memórias que discutem as dimensões morais e éticas da perseguição e a luta — antes da entrega completa e da submissão total ante a besta — da esperança contra o desespero. Cada diário, cada criança, cada mínima vírgula e respiro refletem um fragmento da vida, um instante de existência, um sopro de vitalidade ante a morte iminente. Juntos, os diários mostraram uma visão variada e complexa dos jovens que viveram e morreram naquela época de trevas. Diário é testamento. Diário é testemunho. Diário é vida.” 

“Herança”
• De Jacques Fux
• Posfácio de Christian Dunker
• Ilustrações de Raquel Matsushita
• Maralto Editora. 
• 224 páginas.
• R$ 44,90.
• Lançamentos neste sábado (03/12), das 11h às 14h, na Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte); e neste domingo (04/12), às 10h, na Associação Israelita Brasileira (Rua Rio Grande do Norte, 477, Santa Efigênia, BH).sd


Outras obras do autor

“Antiterapias” (relançamento)
• De Jacques Fux
• Maralto Editora.
• 256 páginas.
• R$ 44,90

“As coisas que não me lembro, sou”
•  De Jacques Fux
• Ilustrações de Raquel Matsushita
• Aletria Editora.
• 56 páginas.
• R$ 40,00

“Mary Anning e o pum dos dinossauros”
• De Jacques Fux
• Ilustrações de Daniel Almeida
• Companhia das Letrinhas.
• 64 páginas.
• R$ 49,90

ENTREVISTA/Jacques Fux

“É preciso entender o trauma geracional transmitido aos filhos e netos”

O que inspirou o senhor a escrever “Herança”?
“Herança” é fruto de minhas pesquisas de pós-doutorado, trabalhei na Universidade de Harvard com o trauma geracional, temos a geração dos sobreviventes do holocausto, mas temos também a geração traumatizada pelo evento que nunca viveu. São filhos, netos e agora os bisnetos. Durante muito tempo, pesquisei a questão teórica, aspectos psicanalíticos para o trauma e quis trazer para um romance. Criei essa personagem que escreve diário em Lódz, aos 14 anos; anos depois, a filha, em sessões de análise e mais tarde, a neta sendo estudiosa do assunto para trazer essas questões do trauma. Eventos limite, muitas vezes achamos que só a pessoa no tempo vive esse trauma. Mas percebemos que é um trauma geracional. Por exemplo, o genocídio negro, agora estamos enfrentando e colocando em pauta essas questões, toda a estrutura racista, o racismo estrutural, é desencadeado por conta do trauma inicial da escravidão. Em meu livro, trato do holocausto e como isso passa de geração em geração e constitui uma comunidade, um povo, uma época. 

Qual a consequência de se naturalizar traumas coletivos, como faz a extrema direita, em relação às ditaduras, à prática de tortura, aos genocídios e ao holocausto? 
A direita extremista está trazendo novamente a simbologia fascista. Susan Sontag, em “Fascinante fascismo”, fala desses símbolos. E vemos como isso é revisitado nas fake news. Então é importante estudar os eventos limites como o holocausto, os genocídios negro e armênio, o genocídio perpetrado por ditaduras. Entramos agora na quarta geração dos sobreviventes do holocausto. As novas gerações já não vão ter contato direto com aqueles que escaparam. Até aqui se conhecia essas pessoas, que davam o seu depoimento, narravam a sua história. Mas agora estão morrendo. Então temos de pensar novas formas de transmitir e fazer compreender o que movimentos fascistas e radicais podem fazer, como ocorreu no holocausto. E, escrevendo, a gente educa. Meu livro, apesar de ser um romance em que as quatro gerações de mulheres são fictícias, todos os personagens ao redor são verdadeiros e históricos. Todos os diários são verdadeiros. 

Como romper com o ciclo de transmissão de um trauma geracional?
É necessário entender o trauma geracional transmitido aos filhos e netos, às pessoas que não vivenciaram esses traumas e são impactadas. Se formos pensar na memória traumática do genocídio negro, que já tem tantos anos, percebemos como o machismo estrutural entrou na sociedade. Hoje estamos debatendo e tentando entender como a sociedade se moldou através de uma estrutura racista, por conta de eventos dos povos escravizados, pelo genocídio dos povos originários. Agora uma parcela da população começa a se conscientizar das consequências históricas da perseguição aos povos originários e escravidão dos negros. 

Além de “Herança”, romance inédito, o senhor lançou este ano outros dois livros e está relançando “Antiterapias”, livro premiado de 2018. Como se explica essa intensa produção e qual a programação para 2023?
Este ano foi pós-pandêmico e alguns livros meus que estavam prontos foram lançados. Então “Herança” foi escrito há alguns anos e é o meu primeiro romance lançado após 2018.  Já está traduzido e pronto para ser publicado na Itália, na Feira Literária de Veneza em março de 2023. O último romance que havia escrito foi “Nobel” (José Olympio), em 2018. Fizemos o relançamento pela Maralto de “Antiterapias” (2012), que foi o meu primeiro livro, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, traduzido para o hebraico e o espanhol, também esgotado. “Herança” e “Antiterapias” vão ser adotados em escolas do Brasil inteiro. Este ano também realizei um dos sonhos: publiquei pela Companhia das Letras o livro infantil “Mary Anning e o pum dos dinossauros”, que fala sobre a descoberta dos dinossauros por uma menina que teve essa descoberta roubada pelo machismo estrutural da ciência. Lancei também uma prosa poética, “As coisas que não me lembro, sou” (Aletria). Para o ano que vem vamos lançar mais um livro infantil, pela Ôzé, uma aventura pelo “Grande Sertão: Veredas”. Ainda na onda de obras prontas e acumuladas, temos para o ano que vem o lançamento de dois outros romances. No primeiro, conto a história do meu pai e a história do pai do meu pai (meu avô). Chama-se “Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia”, fragmentos de memória, escrita que faço junto com meu pai. E o segundo romance se chama “Nunca vou te perdoar por ter me obrigado a te esquecer”.  


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