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Estado de Minas PENSAR

Grazielle Mendes mescla prosa e poesia para extravasar perdas na pandemia

Em seu primeiro livro, a jornalista mineira revela crescimento pessoal com pequenas crônicas e contos com reflexões sobre a temporada no inferno


21/10/2022 04:00 - atualizado 20/10/2022 23:41

Grazielle Mendes Soares
Grazielle Mendes Soares estreia na literatura (foto: gabriela de senna)

 

Paulo Nogueira

 

Tirar beleza da dor e do sofrimento é proeza apenas para poetas e outros espíritos livres, mesmo com o peso da morte a esgarçar os sentimentos nobres. Grande exemplo dessa catarse é o escritor moçambicano Mia Couto, que trata em sua surpreendente obra da sofrida África e consegue denunciar as injustiças seculares do continente com lirismo e sutileza. Agora, a pandemia causada pelo coronavírus, que ceifou milhões de vidas ao redor do mundo, foi uma provação repentina que também deu novas vozes à literatura. Sofrer, mas aprender, se encarar no espelho sem medo. É nesta toada que a jornalista de Belo Horizonte Grazielle Mendes Soares se aventura em seu primeiro livro, “Notícias da velha nascida”, depois de atravessar a pandemia entre perdas e o luto por três pessoas queridas.

 

Mesclando prosa e verso, pequenas crônicas e contos com reflexões sobre os sentimentos vividos durante essa temporada no inferno, Grazielle transborda um amadurecimento forjado na vida rasgada pelo peso da angústia de querer, e nem sempre poder, ajudar as pessoas próximas que o vírus devorou. Foi preciso escrever para (sobre)viver e assim externar sensações desse mundo sombrio, submergir no espelho para se libertar.

 

O expurgo precisava ser feito, por mais doloroso que fosse. Grazielle desabafa: “Despenco no chão da cozinha para recolher os verbos que escapam entre os dentes/Empurro o dedo para dentro da boca, mas não cabe tudo/Mastigo os cacos que agarram na língua e, enquanto me rasgam a garganta, desembesto a cerzir fiapos no antigo casaco. Talvez sirva de vestido e cubra as pernas também/Mas não sei tecer. Nem vestes, muito menos remendos/Não como minhã mãe, que consegue ocultar o encontro entre os retalhos e deixar a linha invisível. A minha desponta num só nó mal atado/Sempre furo o dedo. Sujo as mangas/E nunca dá para limpar o que respinga na parede/Escorre/Gruda nos chinelos/Cuidado para não cair”.

 

Jornalista veterana repleta de histórias reais para contar, Grazielle Mendes não se contentou em guardar a avalanche de sentimentos que a sufocavam durante a pandemia numa gavetinha sentimental. Era preciso transformá-los em autoconhecimento: “São exercícios literários. Refleti muito sobre a velhice, a finitude, a minha própria”, diz a autora, que  também superou esses anos sombrios, além do jornalismo e da literatura, com a dança. Corpo e mente unidos para enfrentar o vírus e os monstros que ele pariu. A repórter cedeu espaço à poeta e investigou não o  mundo à sua volta, mas a própria caminhada. Agora, sem imparcialidade, porque o espelho não permite versões.

 

“O dia está belo como você merecia ver, mas dentro de mim as cortinas estão fechadas”, começa Grazielle em “Ária na corda sol”. Em “A notícia”, segue nas reflexões: “(...) Todas as dores se juntam em flechas que atravessam meu corpo, não de um lado a outro, mas de cima para baixo, do topo da cabeça até o calcanhar, como se medissem quanto sou capaz de suportar. Tem certeza? Todas as perguntas aceleram em círculos, não dentro, mas ao redor de mim, como se apostassem quanto sou capaz de calar. (…) Se eu voltar pelo mesmo caminho posso fugir? Escuto minha voz repetir o que só agora é certeza. E daria tudo para duvidar de novo”.

 

Assim – sem mais spoilers –, a pandemia e as terríveis perdas que gerou forjaram uma escritora, uma poeta e uma mulher mais madura. “Hoje, estou velha como quero ficar. Sem nenhuma estridência”, diz Adélia Prado no poema “Trégua”, lembrado por Grazielle na epígrafe de sua obra.

 

NOTÍCIAS DA VELHA NASCIDA  

 

  • De Grazielle Mendes Soares 
  • Edição da autora
  • 112 páginas
  • R$ 48
  • Lançamento: 22 de outubro, das 9h às 12h, na Livraria Jenipapo, Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi, Belo Horizonte 

 


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