(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Especial celebra centenário de Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos

Escritores mineiros estariam completando 100 anos se estivessem vivos; junto de Hélio Pellegrino e Fernando Sabino, eles marcaram época na literatura brasileira


14/10/2022 04:00 - atualizado 13/10/2022 23:16

Montagem de fotos de Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende
Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Otto Lara Resende (1922-1992) (foto: BADARO BRAGA/O CRUZEIRO/ARQUIVO EM - 10/8/1960 e A CIGARRA/ARQUIVO EM - 30/1/1956)

Gustavo Werneck

 

Um quarteto muito especial está eternizado na frente da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Mais do que homenagem a ilustres figuras, as estátuas em bronze convidam à leitura, abrem portas ao conhecimento e apontam os guardados da alma mineira. 

 

Estão lá, uns de pé, outros sentados, os escritores Fernando Sabino (1923-2004), Hélio Pellegrino (1924-1988), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Otto Lara Resende (1922-1992), autoproclamados “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”. Todos de uma geração talentosa da literatura brasileira, que, com a mudança para o Rio de Janeiro (RJ), então capital federal, nas décadas de 1940 e 50, ganharam notoriedade e imprimiram ideias em livros, artigos de jornais, matérias de revistas, roteiros de cinema e outras formas de expressão.

 

Neste ano, dois dos quatro escritores mineiros – Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende – estariam completando, se estivessem vivos, o centenário de nascimento. Vale lembrar que, se não se encontram presentes fisicamente neste mundo, fizeram por merecer a imortalidade pela obra, pelas frases antológicas e pelo amor às palavras. À memória deles, portanto, todas as honras em 2022.

 

 
Leia também: Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos: as sagas de dois cavaleiros

Leia também: Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos por eles mesmos

Um obsessivo “despiorador” 

 

“O genial frasista de São João del-Rei” – assim era chamado o mineiro Otto Lara Resende pelo carioca Sérgio Porto (1923-1968), famoso com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta. Realmente, entrou para a história uma frase atribuída a Otto – “O mineiro só é solidário no câncer”, cuja autoria ele “jamais confirmou”, segundo Humberto Werneck em seu livro “O desatino da rapaziada”. Esse autor conta mais: “Para essa folclorização, que o incomodava, ninguém contribuiu mais que Nelson Rodrigues (1912-1980), ao transformá-lo em personagem obsessiva de suas crônicas e em título alternativo da sua peça ‘Bonitinha mas ordinária’”.

 

Pulando das palavras impressas para o viva voz, o escritor e jornalista belo-horizontino Humberto Werneck, residente em São Paulo (SP), realça a importância de Otto Lara Resende, com quem conviveu e aprendeu muito. “Ainda é pouco reconhecido como artista. Era talentoso, levava a escrita às últimas, sempre buscando a exatidão. Guardo os originais do meu livro ‘O desatino da rapaziada’ com as anotações feitas por ele, que leu em primeira mão”, conta Humberto.

 

Entre os ensinamentos do mestre, está um método que pode guiar aqueles que têm a palavra como ofício. “Escrevia e depois modificava tudo, dizendo que precisava ‘despiorar’ o texto. Era um trabalho que Pedro Nava (1903-1984, escritor mineiro) chamava de ‘cata-piolho’. Para mim, foi uma boa escola: cortar palavras, tirar o que não precisa, deixar o essencial.”

 

Um exemplo dessa forma de “despiorar” o texto ocorreu quando Otto escreveu “O braço direito”, publicado pela primeira vez em 1963. “Meses antes de morrer, em 1992, ele disse, com bom humor, que já não sabia, após tantas ‘despioradas’, se era ‘O braço direito’ ou ‘O braço esquerdo’, recorda-se Humberto, certo de que Lara Resende era “um perfeccionista, um supercraque”.

 

Humberto Werneck guarda inúmeras histórias sobre Otto Lara Resende, o terceiro dos “quatro cavaleiros” a se transferir para o Rio de Janeiro, mais exatamente em 14 de janeiro de 1946: Fernando Sabino foi em abril de 1944; Paulo Mendes Campos, em agosto de 1945; e Hélio Pellegrino, também psicanalista, em 1952. “No fim da década de 1950, Otto morou na Europa e trabalhou como adido cultural, em dois períodos, na embaixada do Brasil na Bélgica. “Em Bruxelas, escreveu muito, foi uma fase produtiva. Mas tempos depois, já no Brasil, quando alguém lhe perguntava como era o serviço, respondia assim: ‘Adido e mal pago’”.

 

Há outras histórias que se tornaram inesquecíveis, como esta de Rubem Braga (1913-1990, escritor capixaba radicado no Rio): “Otto é um passarinho...é de quem pegar primeiro”. E, de volta ao começo, está Nelson Rodrigues em cena, com sua voz característica. “Ligava constantemente para Otto, que atendia o telefone e respondia ao pedido de falar com ele, dessa maneira: ‘Eu não estou!’.”

 

 Sobre o autor de “Bonitinha mas ordinária”, Otto escreveu em 22/3/1992: “Nelson Rodrigues foi desde criancinha homem de jornal. A partir de certa altura, quando começou a publicar suas memórias e confissões, Nelson repetiu sem parar certos lances de sua biografia. Era de fato a flor de obsessão, como ele próprio se definia. O jornal, pode-se dizer, estava no seu berço. Ou no seu sangue, a partir do pai, Mário Rodrigues. Quando conheci, era já autor de ‘A mulher sem pecado’ e acabava de estourar com ‘Vestido de noiva’, em 1943. Virou uma celebridade nacional. Uma única peça de estrondoso sucesso, ainda que controvertida, apagou o nosso complexo de inferioridade dramatúrgico. Dizia-se que a literatura brasileira em todos os gêneros florescia exuberante de talento e criatividade. Só o teatro tinha ficado para trás”. 

 

Na edição lançada em 1993, pela Companhia das Letras, a escritora Ana Miranda escreveu no prefácio: “‘O braço direito’ foi publicado pela primeira vez em 1963. Desde então, durante três décadas, Otto Lara Resende reescreveu seu precioso romance. Chegou a terminar três diferentes versões, entre várias outras inacabadas. É comovente o exame desse material. São milhares de páginas datilografadas, rabiscadas, com anotações manuscritas de palavras a serem usadas no texto, ou um comentário a ser incluído; coisas que Otto Lara Resende leu em algum lugar ou vindas do recôndito de sua memória”.

 

As memórias, ressaltou Ana Miranda, poderiam vir “de uma velha igreja mineira com altares de ouro, fantasmas de sua infância, seres que conheceu, histórias que ouviu contar, registros da maneira de falar de sua gente, o desenho de um crucifixo, um odor, um ruído, um raio de luz, o martírio de um santo; tudo que pudesse enriquecer o romance era anotado. Pode-se dizer que ‘O braço direito’ é um livro de uma vida inteira”.

 

E mais escreveu Ana Miranda, em 3 de junho de 1993: “Havia diferentes versões da última parte, 'O nó cego'. Uma delas era a que Otto Lara Resende havia dito ser o texto sobre o qual ele reescreveria o final do livro. Essa foi a versão escolhida para fechar o romance. Embora se tratasse de um texto considerado, pelo autor, ainda inacabado, poucas mudanças se fizeram necessárias para adequá-lo ao corpo do livro. Assim foi concluída a edição de 'O braço direito', um romance único, perturbador, esplêndido, em que Otto Lara Resende, ao mostrar uma parte profunda da sua mente, nos leva ao mundo obscuro e silencioso da mais misteriosa de todas as Minas Gerais”. 

 

 

Um mineiro cosmopolita

 

Foi em meados da década de 1950, numa livraria de Belo Horizonte, que os leitores quase “saíram no tapa” para comprar “A terra inútil”, tradução feita por Paulo Mendes Campos de “The waste land”, do poeta de língua inglesa T. S. Eliot (1888-1965). Quem conta o episódio – e estava lá – é o romancista e crítico literário Silviano Santiago, mineiro de Formiga (Centro-Oeste de Minas) e residente em São Paulo (SP). “Havia poucos volumes na loja, mas consegui garantir o meu, que tenho até hoje”, conta o romancista, que teve ali seu primeiro grande contato com o trabalho de quem depois conheceu pessoalmente e considera grande cronista e tradutor.

 

Silviano Santiago já acompanhava as crônicas de Paulo Mendes Campos publicadas na revista Manchete e admirava, paralelamente, suas traduções, para o português, de obras em inglês e espanhol. Mas um fato desandou a carreira brilhante do cronista mineiro. “Nos anos 1950, quando o neoconcretismo estava no auge, ele publicou, na hora errada, o livro de poemas ‘O domingo azul do mar’, de poemas líricos, que recebeu uma crítica cáustica de Mário Faustino (1930-1962) no suplemento literário do Jornal do Brasil. Isso foi um baque para ele”, conta Silviano Santiago.

 

Águas passadas, pois, segundo o romancista e crítico literário, Paulo Mendes Campos era um homem muito bem preparado, “mas prometeu um romance que nunca saiu. deixou algumas coisas no ar”, embora a lacuna tenha sido preenchida, na década de 1980, com a publicação de uma antologia com crônicas, poemas e traduções.

 

Quando se pergunta sobre a mineiridade em Paulo Mendes Campos, Silviano Santiago vai além do conceito. “Era um mineiro cosmopolita, morou na Inglaterra, era universal.” Em 1949, foi à Europa pela primeira vez, e, dois anos depois, casou-se com Joan Abercrombie, de origem inglesa. “Paulo fez parte de uma grande geração de escritores”, resume.

 

Força do tempo

 

“Na carreira literária, a glória está no começo. O resto da vida é aprendizado intensivo para o anonimato, o olvido.” A frase é de Paulo Mendes Campos já perto dos 60 anos. Mas o tempo é o senhor da história e mostra que, passadas décadas, ele continua atual. “É o cronista brasileiro menos datado”, diz o jornalista carioca Flávio Pinheiro, ex-diretor do Instituto Moreira Salles (IMS), destacando a perenidade do trabalho de Paulo Mendes Campos, mesmo sendo a crônica um recorte do cotidiano, um flagrante, em palavras, do momento. “Você lê as crônicas dele e parece que é hoje, basta trocar algumas palavras.”

 

No IMS, Flávio Pinheiro fez a coordenador editorial de “Diário da Tarde”, que abriga as edições imaginárias de um jornal planejado por Paulo Mendes Campos – o fundador, diretor de redação e revisor. Mas antes desse trabalho, Pinheiro foi responsável por outra empreitada, dessa vez pela Editora Civilização Brasileira: a coleção em sete volumes com parte da obra do mineiro. São eles “O amor acaba”, contendo crônicas líricas e existenciais; “Brasil brasileiro”, sobre Minas e o Brasil; “Alhos e bugalhos”, com narrativas de humor; “Artigo indefinido”, sobre livros e crônicas literárias, “Gol é necessário”, crônicas esportivas e foco no seu time, o Botafogo; “Murais de Vinícius e outros perfis”, sobre o poeta carioca Vinícius de Moraes; e “Cisne de feltro”, cujo título é tirado de um poema do chileno Pablo Neruda (1904-1973), de quem Paulo Mendes Campos era grande admirador.

 

Após citar um por um os títulos dos livros, Flávio Pinheiro enaltece o zelo que Paulo tinha pelas palavras, o uso precioso de cada uma na sua prosa poética, seu originalíssimo repertório vocabular. “Tinha erudição, conhecimento, preparo. Gostava de ler, era um leitor atento”, revela.

 

Em dezembro, a Companhia das Letras vai lançar um volume de poesia completa, organizado por Luciano Rosa e composto por “Balada de amor perfeito”, “Arquitetura”, “O domingo azul do mar” e “O testamento do Brasil”, reunidos previamente em “Poemas”. Estarão também os publicados no volume “Trinca de copas”, e mais 30 poemas recolhidos nos arquivos do Instituto Moreira Salles, inéditos em livro. Outra novidade estará em uma pequena antologia bilíngue com poemas traduzidos de T. S. Eliot, W. H. Auden e Ezra Pound.

 

Livro aberto

 

Um misto de curiosidade e mergulho no tempo guiam a leitura de “Diário da Tarde”. Ao longo das páginas do seu jornal imaginário, Paulo Mendes Campos criou algumas seções, como Coriscos, Bar do Ponto, Grafite e Pipiripau.

 

Veja esta, leitor, denominada “Duplex”, em Pipiripau: “Minha duplicidade aqui está: sei desatar muito bem, e culpar, o nó original, inelutável, de que resulta o embrulho dos meus malfeitos. E jamais me ocorre descobrir e apontar as causas, igualmente inelutáveis, dos meus acertos”.

 

Já em Bar do Ponto, registrou, de forma bem divertida, a “Procissão do desencontro”: “Em Minas, era visual a libidinagem. Donzelas e damas dos meus vinte anos eram shelleyanas... Mas não assumiam a negativa. Os olhos delas se amarravam ao mesmo tempo em que iam desatando os laços eróticos assim: ‘I can’t give you what men call love...porque papai não deixa’. Ou assim: ‘I can give you what men call love... mas meu marido me mata”.

 

E mais uma, de Grafite, “Revolução espiritual”: “Quase todos vivem em permanente rendição. Os melhores alternam períodos longos com tumultos libertários. E só os raros vivem em guerra permanente pela independência”. 


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)