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Estado de Minas PENSAR

Coletânea de autores negros mapeia as raízes da desigualdade

Artigos do livro 'Brasil 200 anos - A resistência negra ao projeto de exclusão racial' analisam o 'déficit de cidadania' da população negra brasileira


07/10/2022 04:00 - atualizado 06/10/2022 23:15

Helio Santos
(foto: arquivo pessoal)

 

Márcia Maria Cruz

 

O professor mineiro Helio Santos escalou 34 intelectuais, sendo 18 mulheres e 16 homens, para propor uma reflexão do bicentenário da Independência do Brasil a partir de uma perspectiva étnico-racial. O resultado é a coletânea “Brasil 200 anos – A resistência negra ao projeto de exclusão racial”, que será lançada em 10 de outubro, em São Paulo, e no dia 13, no Rio de Janeiro. Ainda não há previsão de lançamento em Belo Horizonte.

 

Os intelectuais negros escreveram 34 artigos, a maioria deles ensaísticos e cinco literários. Os textos literários foram escritos por Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda e Cuti. “A coletânea não é acadêmica. Os textos são de tamanho pequeno e médio, que possibilita a leitura de um texto no trajeto entre Belo Horizonte e o Rio. Fizemos um esforço para a coletânea atingir um público amplo”, afirma Helio, mineiro de Belo Horizonte. A publicação toma como gancho a efeméride de 200 anos da Independência do Brasil, comemorada em setembro, para refletir sobre a formação do país.

 

Os artigos mapeiam a situação da população negra brasileira, que sofre com um “déficit de cidadania”, nas palavras do professor Helio. Ele avalia que homens brancos, que estiveram à frente da República, nunca deram centralidade à questão racial. Os números desfavoráveis à população negra demonstram a ausência de políticas públicas: 6,5 mil favelas, 33 milhões de pessoas passando fome, apenas quatro de 10 famílias brasileiras têm acesso à alimentação; o país tem a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas de China e os Estados Unidos. O professor destaca que essas mazelas atingem a população negra de forma drástica, e as causas da desigualdade entre negros e brancos têm raízes históricas.

 

Logo depois da abolição da escravidão, o Estado brasileiro fomentou ações afirmativas para europeus sem que se estendessem à população negra. As políticas públicas em favor dos imigrantes europeus estão descritas no Decreto 528, de 28 de junho de 1890, e reforçadas no Decreto 9.081, de 3 de novembro de 1911. “O Decreto 9.081 tem 277 artigos para apoiar a vinda de imigrantes. Só para comparar, a Constituição Federal tem 250 artigos”, diz. Da abolição até a Constituição de 1988, quando o racismo foi criminalizado, o Estado brasileiro promulgou outras leis, muitas delas que criminalizavam, por exemplo, os negros que não tinham trabalho, o que era caracterizado como “vadiagem”. Ao passo que os imigrantes, que eram pobres nos países de origem, eram incentivados.

 

O professor Helio destaca que não vê problema no fomento aos imigrantes europeus; no entanto, em seu ensaio, ele questiona os motivos de essas ações afirmativas não terem sido estendidas à população negra. Ele lembra que as ações afirmativas, sendo as cotas as mais conhecidas, foram implementadas no Brasil tardiamente – um século depois da abolição e ainda sob muito protesto de uma parcela da sociedade brasileira.

 

“Os bisnetos e tataranetos d pessoas beneficiadas pelo Decreto 9.081 são, na atualidade, os críticos das cotas raciais”, pontua. Ele considera que foi uma “absurda injustiça não ter estendido as ações afirmativas aos negros que estavam aqui há 350 anos.” Ao contrário, a população negra foi criminalizada e reprimida pelas polícias. A publicação propõe um novo acordo para equidade racial. “Para reverter, tem que pensar políticas públicas para combater os tipos de racismo”, afirma. Ele defende a implementação de ações afirmativas sistêmicas que signifiquem a implementação de políticas em diversos setores– educação, saúde, geração de renda, cultura e segurança. Uma dessas políticas seria a elaboração, por exemplo, de um Plano Nacional da Juventude Negra Viva. O novo acordo também aponta necessidade de apoio financeiro, pedagógico e tecnológico às universidades públicas, que correm o risco de ser sucateadas; universalização do ensino infantil.

 

 

Sobre o organizador

 

Mineiro de Belo Horizonte, Helio Santos inicia a sua carreira de ativista em meados dos anos 1970, em São Paulo. Em 1984, participa da fundação da primeira iniciativa do Estado brasileiro para trabalhar a questão do negro no pós-Abolição, sendo o presidente fundador do Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo – órgão pioneiro que induziu várias iniciativas semelhantes em todo o país. 

 

Mestre em finanças e doutor em administração pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, foi professor da PUC-Campinas e da Universidade São Marcos, no estado de São Paulo. Atualmente, leciona na Fundação Visconde de Cairu (Salvador), no mestrado em desenvolvimento humano e responsabilidade social.

 

Helio coordenou nos anos 1990 um grupo precursor que colocou na agenda pública as políticas de ação afirmativa (políticas de cotas) para a população negra. É um dos fundadores do Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD), ONG com foco na gestão da diversidade. Preside o Conselho Deliberativo do Fundo Baobá, entidade voltada para o fortalecimento das organizações que trabalham pela equidade racial no país.

 

É autor do livro “A busca de um caminho para o Brasil: A trilha do círculo vicioso” (Editora Senac, 2001), ensaio que tem como tema o desenvolvimento socioeconômico nacional com sustentabilidade. Também escreveu “O homem lésbico,” romance em que se evidencia um tipo de homem mais adequado à sensibilidade feminina na contemporaneidade (Editora Global, 2011).

 

“Resistência negra ao projeto de exclusão racial – Brasil 200 anos (1822-2022)”

 

  •  Organização de Helio Santos 
  •  Editora Jandaíra
  •  440 páginas 
  •  R$ 90  

 

 

Cida Bento
(foto: arquivo pessoal)
 

Independência branca e morte negra

 

Cida Bento*

 

Quando, em 7 de setembro, soou o grito “independência ou morte?”, o ato representava o grande momento em que o país deixava de ser uma colônia portuguesa e passava a ser uma nação independente. Mas, parcela da elite brasileira que comandava o Brasil naquele período tinha expectativas totalmente diferentes das do povo brasileiro com relação à Independência.

 

Para essa elite, independência significava manutenção da propriedade “escrava”, não ingerência do Estado nas relações privadas e no livre-comércio, que era o tráfico negreiro. Ou seja, a independência que a elite desejava não contemplava a maioria da população, que era negra e, em grande parte, escravizada.

 

A classe dominante idealizava um Brasil com identidade nacional branca, uma nação em que imigrantes europeus e herdeiros de ex-senhores de engenho ou de cafeicultores revelariam ao mundo um país moderno, de progresso, “civilizado”. Esse ideal, no entanto, se chocava com a realidade de uma população majoritariamente negra, abrindo espaço para a adoção pelas elites das teorias higienistas europeias, que prescreviam a exclusão do povo negro, sua morte social e física.

 

Nesse sentido, a palavra “morte” no grito que assinala o surgimento desta nação pode também ser entendida como relacionada à lei da pena de morte surgida naquele período, que objetivava punir pessoas negras rebeldes à ordem escravocrata após a ocorrência de grandes revoltas. Com ela, o Estado tomou para si a responsabilidade de punir e matar os negros que buscavam liberdade, num contexto de “independência”, ou seja, de luta por emancipação social.

 

Em muitos diferentes episódios de nossa história, a elite brasileira se colocou como protagonista de ações emancipatórias decorrentes das lutas por libertação protagonizadas pela população negra, como, por exemplo, em 13 de maio de 1888, quando a princesa Izabel aboliu a escravidão, em que apenas 20% dos escravizados não estavam libertos, pois a grande maioria já tinha alcançado a alforria. Dois séculos depois, num outro momento de luta e emancipação coletiva, o documento de apoio à democracia e fortalecimento do Estado de direito, assinado em 11 de agosto de 2022 na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, congregou organizações da sociedade civil, de direitos humanos e ambientalistas.

 

O documento foi também assinado por organizações das elites econômicas e sociais, parte das quais opera e se beneficia de políticas que são totalmente contrárias à equidade e, portanto, à democracia. São políticas que visam à precarização do trabalho, à flexibilização do direito ambiental e dos direitos dos povos indígenas, resultado da presença de organizações ativas no campo da concentração de riquezas e da ampliação das desigualdades. E essa situação da elite se evidencia em diferentes pesquisas, como por exemplo nos dados divulgados pelo relatório “A distância que nos une”, da Oxfam, segundo o qual seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país e os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%. De outro lado, na atualidade, estão endividadas mais de 77% das famílias brasileiras. Dessa forma, permanece não resolvido o grande desafio de debater e tornar efetivo o esforço pela democratização do país, envolvendo particularmente a parcela da elite econômica e financeira que se beneficia e faz crescer as desigualdades – em particular as raciais e de gênero – que atingem a maioria da população brasileira.

 

O sistema político-econômico existente hoje foi construído para manter a maioria da população em condição de inferioridade e o seu desmantelamento afetaria os interesses de quem dele vem se beneficiando de diferentes maneiras. A título de exemplo, de cada R$ 1 alocado em investimento ou formação bruta de capital (investimentos produtivos), existem no país mais de R$ 6 aplicados em ativos financeiros (títulos de dívida pública ou privada, ações de empresas, contratos de câmbio e commodities).

 

Essa opção das elites brasileiras por investimentos improdutivos – que não é um problema local, mas uma característica do capitalismo em sua etapa atual – reduz a oferta de trabalho, imprescindível para a sobrevivência da população negra, cuja juventude corresponde a 61% da população jovem do país. Maioria entre os desempregados e trabalhadores informais, com salários inferiores aos da população branca, essa juventude pressiona fortemente o mercado de trabalho.

 

No entanto, parcela expressiva dessa mesma juventude vive uma situação inusitada em razão dos ataques do atual governo contra as ações afirmativas e as cotas no ensino superior. Estudando em universidades que sempre tiveram boa reputação, mas que nos últimos seis anos foram sucateadas, sob a justificativa de que se transformaram em território de uso de drogas e de balbúrdia, a juventude negra vê comprometida sua permanência na universidade e a possibilidade de usufruir de um ensino qualificado que propicie uma inserção igualmente qualificada no mundo do trabalho. Sob ataque na atualidade, a implementação das ações afirmativas de promoção da igualdade racial é parte inalienável do direito à educação e, como parte desse processo, a profusão de experiências de ensino de história e cultura afro-brasileira e africana protagonizada nas escolas da educação básica tem potencial para transformar a ciência, a educação e a sociedade.

 

Como dizia Florestan Fernandes, “o trabalho lança raízes no Brasil através do trabalho escravo” e esta é uma fronteira de luta que implica enfrentamento das grandes estruturas públicas e privadas que sempre engendraram formas de manter a população trabalhadora negra em condição de subalternidade. Pode-se salientar momentos importantes dessa luta, quando, por exemplo, em 1984, denunciamos a existência do “Código 4” na ficha dos postulantes a vagas em aberto no Sistema Nacional de Emprego (Sine), do Ministério do Trabalho, que sinalizava quando a pessoa que se candidatava às vagas em aberto era negra, indicando que sua ficha deveria ser excluída.

 

Décadas depois, por pressão do movimento negro, o próprio Sine era instado a colocar, agora explicitamente, o dado raça/cor nas mesmas fichas, só que com outra função: diagnosticar o tratamento que estava sendo dado à população negra que procurava emprego, bem como para criar políticas que assegurassem a essa população as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento no mercado de trabalho.

 

Ainda naquele período, foi incluído o dado raça/cor na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o que influenciou as análises estatísticas do mercado de trabalho e permitiu conhecer melhor a condição de trabalhadores e trabalhadoras negras.

 

Este fato ocorreu num período próximo à criação de outra política pública do Ministério do Trabalho que definiu quais grupos estavam em desvantagem ou eram alvos de discriminação no mercado de trabalho e, por conta disso, deveriam ter acesso prioritário aos projetos apoiados pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que financiava programas de desenvolvimento econômico, em particular os de geração de emprego e renda.

 

Esses dois últimos fatos foram consequência da denúncia feita em 1992, em Genebra, pelas centrais sindicais e por organizações do movimento negro, a partir de uma provocação do Centro de Estudos do Trabalho e Desigualdades (Ceert) sobre o descumprimento pelo Brasil da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de equidade na ocupação e emprego. Assim, sempre temos um contexto emancipatório, criado a partir da sociedade civil organizada – a exemplo da implementação das ações afirmativas tanto no mundo do trabalho quanto da educação – e ele gera uma forte reação em sentido contrário, um bloqueio organizado pela parcela da elite que não quer um Brasil democrático.

 

Mas a luta persiste e se torna cada vez mais intensa. Se no nascedouro do Brasil havia dois projetos de país – um dos pobres e pretos e outros dos ricos predominantemente brancos –, eles continuam vivos até hoje, como nos lembra o mote do Julho das Pretas de 2022 – “Mulheres Negras no Poder, Construindo o Bem Viver!”.

 

Por toda a nossa história, podemos constatar a permanente luta pela democratização desafiada pelo pacto narcísico em favor da permanência dos mesmos grupos em lugares de poder e decisão, a partir de uma relação de dominação mantida pela força e, vale ressaltar, pela proliferação de armas, como constatamos hoje no Brasil.

 

Grupos humanos indiferentes às regras sociais de convivência na pluralidade, bem como aos controles sociais, veem no uso da força e das armas uma oportunidade de expandir seus interesses e ampliar a sua autoridade.

 

Fomentam o nacionalismo, a xenofobia, o fanatismo religioso e transformam os outros grupos humanos em estranhos, e logo a seguir em inimigos. Esse contexto é gerador de um ódio essencial e inquestionável.

 

A fome de poder político dessa parcela da classe dominante leva ao exercício do controle da educação, da imprensa e, geralmente, também da Igreja, sob seu poderio. Isso possibilita organizar e dominar as emoções do povo, num esforço de torná-lo partícipe de seus propósitos. E é assim que parte de nós, enquanto povo brasileiro, age como se sentisse saudades da escravidão e reivindica a volta da ditadura.

 

Em contrapartida, a maioria da população brasileira tem uma leitura cada vez mais aguçada da situação a que está submetida, exigindo ser tratada como cidadã, sem ter sua sobrevivência amea- çada pelo próprio Estado.

 

A perversidade que se constata em nossa sociedade, acentuada pela ganância de agentes do sistema econômico que extraem uma grande e crescente rentabilidade, estrangulando os gastos sociais com o “teto de gastos”, gera um legado. Essa herança, apropriada, consolidada e transmitida para as próximas gerações, dentro de um mesmo grupo, é tratada como resultado de um sistema meritocrático que premia os que “têm competência”.

 

Mas os ideais democráticos são indissociáveis da equidade e exigem mudanças profundas em favor da maioria.

 

Vivemos ainda um período em que é grande o desafio à construção de uma sociedade onde a defesa dos direitos humanos e dos cuidados e proteção ao meio ambiente tenha centralidade e provo- que outras perspectivas de crescimento e desenvolvimento, orientadas pelo bem-viver, pelo estabelecimento de relações mais cooperativas, solidárias e acolhedoras.

 

Nesse contexto, cabe reafirmar que nossas imensas desigualdades têm o racismo como principal fator estruturante, portanto, se políticas para pobres são importantes, pois raça e classe estão imbricadas, elas sozinhas não resolvem uma realidade marcada pela violência racial.

 

Assim, a equidade racial pode efetivamente abrir o caminho para toda a pluralidade da população brasileira, democratizando o patrimônio concreto e simbólico, a própria ciência e o conhecimento. Quando o mundo focalizar a busca do conhecimento e não estiver lutando apenas por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir para um novo patamar no processo civilizatório, único caminho capaz de erradicar a violência e promover a justiça.

 

 

* Cida Bento é diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e integra diversos comitês e grupos assessores de instituições e empresas. Doutora do Instituto de Psicologia da USP, é autora de diversos livros, sendo o mais recente “O pacto da branquitude” (Companhia das Letras) 


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