(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Sérgio Rodrigues convoca Machado e Alencar para enfrentar o Rio de 2020

Novo livro do autor de 'O drible' imagina os dois escritores na capital carioca durante a pandemia


16/09/2022 04:00 - atualizado 15/09/2022 23:20

Escritor Sergio Rodrigues
Com 'A vida futura', Sérgio Rodrigues imagina Machado de Assis no Rio de Janeiro de 2020 (foto: Bel Pedrosa/divulgacao)
E se Machado de Assis resolvesse descer do Olimpo dos escritores para, acompanhado por José de Alencar, dar uma volta no Rio de Janeiro de 2020? Foi o que imaginou Sérgio Rodrigues (mineiro radicado no Rio de Janeiro, autor do premiado “O drible”), em seu novo romance, “A vida futura” (Companhia das Letras). Com a pena da galhofa, Rodrigues imagina os autores de “Dom Casmurro” e “Iracema” às voltas com debates identitários, milicianos, análises sobre a cornitude e festas alucinantes durante a pandemia. 

Graças à destreza narrativa do autor, enxergamos o que há de patético e trágico no tempo pela presente pelos olhos de Joaquim Maria Machado de Assis, o Jota, e José de Alencar, o outro Jota. E aprendemos que, muitas vezes, os mortos estão mais vivos do que os sórdidos que nos assombram, na “treva absoluta”. Até porque, “a cada dia, a cada minuto, um novo leitor abre um velho livro e – mágica certeira, inextinguível – reacende seu autor no céu.” Confira, a seguir, uma entrevista com Sérgio Rodrigues, com perguntas elaboradas a partir de passagens de “A vida futura”. O autor também comentou a reedição de “O homem que matou o escritor”, coletânea de contos lançada em 2000 e que volta às livrarias em edição de bolso. 

Leia também: João Almino ‘ressuscita’ o Conselheiro Aires em novo romance


Qual o ponto de partida de “A vida futura”?
Acho que o ponto de partida foi o silêncio. Quer dizer, a dificuldade e a necessidade de escrever num momento em que estávamos todos trancados em casa, sem saber quanto tempo de vida nos restava e se a pandemia ia passar algum dia. De repente, vi os projetos literários que eu vinha acalentando até então perderem o sentido diante daquele mundo distópico, um planeta assolado pela peste e um Brasil assolado por esse governo delinquente e protofascista que ainda está aí. Naquela hora, parecia que a literatura e a própria linguagem precisavam se reinventar do zero para dar conta do que estava acontecendo. E um dia me veio esta ideia maluca, que talvez nunca me ocorresse em tempos de normalidade: pedir ajuda ao nosso maior escritor para sair do impasse.

O que o fez decidir por um narrador tão ilustre? Releu a obra de Machado antes de iniciar a escrita do romance?
Desde o início, a ideia era ressuscitar o Machadão, o projeto não existiria sem ele. Sim, reli quase tudo, romances, contos e crônicas, e li também livros sobre o homem e sua obra, desde ensaios críticos até biografias. Também desde o início estava claro que o livro seria uma comédia, pois eu achava que só a pena da galhofa, para usar uma expressão machadiana, me impediria de quebrar a cara numa empreitada tão insensata. Em registro realista, o fracasso seria certo, mas com uma história farsesca de fantasmas eu achava que tinha alguma chance. E a verdade é que poucas vezes me diverti tanto escrevendo.

Foi mais fácil observar o Brasil de hoje pelos olhos (ou, melhor, pelo pince-nez) de um homem do século 19? 
Esse recuo a uma linguagem de época me permitiu olhar de novo para o presente e enxergá-lo, falar dele de um modo que me parecia ter algum frescor, o que não vinha conseguindo com minha prosa normal, contemporânea. Pode parecer paradoxal, mas foi assim. No começo, eu estava meio brincando, não sabia se a coisa teria futuro, se aquilo chegaria mesmo a virar um livro. Quando minha mulher e meu filho leram os primeiros capítulos e se encantaram, ganhei ânimo para ir em frente. A verdade é que incorporar estilos variados, imitar vozes, transformar a linguagem numa espécie de personagem, tudo isso sempre foi parte importante do que me interessa como escritor. Acredito que a única diferença com “A vida futura” foi ter radicalizado um pouco mais o procedimento. 

Como tentou driblar as armadilhas da discussão sobre o uso da linguagem neutra e da visão de seu personagem sobre o tema?
Tentando ser o mais honesto possível ao imaginar o que Machado acharia disso. Com seu jeito oblíquo, seu ceticismo, seu humor, mas também sua lucidez e sua curiosidade, o fantasma do Machado observa com alguma perplexidade as discussões sobre o que chamam de linguagem neutra e o fato de ser hoje amplamente reconhecido como um escritor negro, o que não ocorria em seu tempo. Cabe a José de Alencar, conservador e escravocrata, rejeitar tudo isso em bloco, escandalizado. Machado, não, ele quer de fato entender nosso presente.

O humor permeia os capítulos. É um artigo em falta no Brasil e na literatura brasileira contemporânea?
Existe uma prevenção de grande parte dos escritores e da crítica contra o humor, como se ele fosse um recurso menor, compatível apenas com uma literatura comercial leve. Como se os grandes temas universais – o amor, a morte, as engrenagens sociais – fossem refratários à comédia. Considero isso um equívoco monumental. Alguns dos maiores escritores da história foram grandes humoristas. Cervantes e Shakespeare, por exemplo, para nem falar do próprio Machado. Não consigo entender de onde vem essa ideia de que a literatura de qualidade precisa ser sisuda. Me parece que a tragicomédia é o tom mais indicado para dar conta do mundo em geral e do Brasil em particular. Talvez sempre tenha sido, não sei. Mas em nosso tempo pré-apocalíptico com certeza é.
 

"Com seu jeito oblíquo, seu ceticismo, seu humor, mas também sua lucidez e sua curiosidade, o fantasma do Machado observa com alguma perplexidade as discussões sobre o que chamam de linguagem neutra e o fato de ser hoje amplamente reconhecido como um escritor negro, o que não ocorria em seu tempo"

 
“Cada tempo tem suas palavras, seus meios, seus modos, seus medos.” Quais são as palavras, meios, modos e medos em alta na produção literária brasileira? 
Não sei. O contemporâneo é sempre uma bagunça, um turbilhão. Tenho a impressão de que hoje se está escrevendo de todas as formas possíveis sobre tudo, numa pulverização que é a cara da nossa época e que não se restringe à literatura. Ao mesmo tempo, parece haver uma maior abertura para o acolhimento e a valorização de um tipo de ficção baseada na experiência de vida dos autores, no testemunho, no resgate de vozes que a tradição calou, o que combina com nosso Zeitgeist de guerra contra o racismo, o machismo e a homofobia estruturais. Mas só o distanciamento histórico vai ser capaz de organizar um pouco melhor essas percepções. 

Quais livros de Machado de Assis têm mais a dizer ao Brasil de hoje? Acredita que, se Machado fizesse a viagem no tempo imaginada no seu livro, seria cobrado a se posicionar como autor negro? 
Sem dúvida, seria cobrado, como é no meu romance. E acho que, passado o estranhamento inicial, não teria nenhum problema com isso. Na história que imaginei, essa postura fica clara quando ele se apaixona por Mar, uma jovem negra da Rocinha que se identifica como não binária, e que para ele simboliza nada menos que o futuro do Brasil. Uma coisa que me chamou a atenção na releitura da obra machadiana foi o fato de que o homem está ficando cada vez maior. O que à primeira vista parece quase impossível, visto que ele já é considerado há bastante tempo nosso maior escritor. Não precisaria continuar crescendo, mas continua. É um milagre. A impressão é que Machado mapeou todos os nós da sociedade brasileira, aqueles que não se desatam nunca, com uma agudeza que vai ficando mais clara com o tempo. Para não deixar de eleger os pontos altos da sua obra, destaco de modo nada surpreendente a trinca dos romances maiores – “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” e “Dom Casmurro” – e umas duas dúzias de contos. Entre estes, um menos conhecido mas absolutamente espantoso, de violência rubem-fonsequiana no retrato do rebaixamento moral coletivo provocado pela escravidão, chamado “Pai contra mãe”.

O que une os contos de “O homem que matou o escritor”?
Em quase todas as histórias há alguém que escreve. Só numa delas o protagonista não é escritor, mas se imagina como personagem de um escritor, o grande autor americano de policiais Elmore Leonard. E para todos esses personagens, a relação com a literatura, com o ato de escrever, acaba tendo um preço bem alto ao se materializar em suas vidas de forma brutal, quase sempre violenta. É meu livro de estreia, e ao relê-lo para o relançamento me dei conta do quanto havia ali de inconformismo juvenil com a ideia bastante difundida de que a literatura vem há muitas décadas perdendo relevância. Os personagens de “O homem que matou o escritor” vivem como se, para o bem e para o mal, não houvesse nada mais relevante no mundo. 

 “Vivemos numa sociedade pop, fragmentária, de memória curta”, reflete o narrador do conto “O homem que matou o escritor”. O que mudou nessa sociedade desde que o conto foi publicado?
Basicamente, o advento das redes sociais. O livro é de 2000, ou seja, a revolução digital já estava em curso, tínhamos uma internet ainda na infância, mas já impressionante para a época. Mas não tínhamos redes sociais. Com elas, a ideia de uma sociedade pop, fragmentária e de memória curta foi elevada à enésima potência. Tanto que elas estão por trás de grande parte das ameaças enfrentadas hoje pelo mundo, como o tsunami de fake news, a proliferação de teorias conspiratórias descabeladas, a ascensão da extrema-direita, a perda de confiança na ciência, na imprensa e nas instituições em geral, o ódio ao diferente etc.

“Sentia falta daquela consciência de segundo grau que tudo filtrava – por olhos, ouvidos, tato, intuição – na lente da literatura. Não tinha a menor dúvida de estar destinado a grandes feitos literários, e, portanto, grandes feitos de vida.” O que seria um grande feito literário no Brasil atual? E um grande feito de vida?
Não faço ideia! (risos) O personagem a quem ocorre esse pensamento é um transtornado. Alimenta uma série de ilusões doentias, que acabam por levá-lo ao crime, sobre o que é literatura e o que é vida, para ele duas dimensões tão interligadas que chegam a ser uma coisa só. Não acredito nisso. Por mais que a literatura seja central na minha vida, gosto de pensar nela como um ofício, um trabalho, resistindo à romantização. Talvez um grande feito literário, em qualquer época, seja escrever algo que encontre leitores. Quanto à vida, simplesmente manter a esperança de que dias melhores virão para nossa espécie me parece hoje um feito notável.

Quem faz literatura no Brasil é ‘doudo’? 
Quem se mete a escrever literatura em qualquer lugar precisa ser meio doudo porque, tendo todos os parafusos bem apertados, a pessoa provavelmente vai encontrar formas melhores de gastar seu tempo. No Brasil, país em que se lê tão pouco, pode ser que a doudice seja maior ainda. Mas, nesse caso, viva os doudos!

“A vida futura”
De Sérgio Rodrigues.
Companhia das Letras.
168 páginas.
R$ 64,90.

“O homem que matou o escritor” 
De Sérgio Rodrigues.
Companhia de Bolso.
128 páginas.
R$ 39,90.



receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)