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Estado de Minas LITERATURA

Saramago: histórias da infância do escritor viram livros para crianças

Textos foram pinçados da obra adulta do autor português, e transformadas em volumes infantis com substância e leveza


25/02/2022 04:00 - atualizado 24/02/2022 23:33

Foto de José Saramago
"O mito do paraíso perdido é o da infância - não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei." - José Saramago, em "Uma luz inesperada"
A Companhia das Letrinhas acaba de lançar, com o capricho habitual, dois livros de José Saramago em edições voltadas para o leitor infantil: “O silêncio da água” e “Uma luz inesperada”. Ambos os textos foram pinçados de obras adultas do autor, já publicadas no Brasil. No livro de origem, cada um ocupava duas páginas, mas agora espraiam-se por 30 páginas, com um ou dois parágrafos por página, acompanhados de amplas e expressivas ilustrações. Essa opção editorial tem o efeito de diluir – no melhor sentido – o peso do texto de Saramago, resultando em livros infantis que têm substância e leveza. 
página do livro 'Uma luz inesperada'
"Uma luz inesperada"

Em nova edição, “O silêncio da água” veio do livro “As pequenas memórias”, lançado no Brasil em 2006. É uma história de pescador, uma espécie de “O velho e o mar” calibrado – no tamanho do texto, do pescado e do pescador – para o leitor infantil. Um garoto vai, com seus petrechos, pescar na “boca do rio”, a foz do Almonda, e é surpreendido por um violento puxão que lhe leva embora o anzol, a boia e o chumbo. Diante do espanto, o garoto reage de forma corajosa e ao mesmo tempo impensada: corre de volta à distante casa dos avós, esbaforido, para preparar outra vara de pesca, como se a criatura aquática – que para ele equivalia a um monstro – fosse esperá-lo no mesmo ponto do rio. A avó desaconselha o garoto a voltar ao rio, mas ele não está disposto a render-se diante do poderoso rival: “eu não a ouvi, não a queria ouvir, não a podia ouvir”. 

Assim, vai encarar novamente o silêncio mais profundo do mundo: o silêncio da água. De certo modo, é a sua terceira margem do rio. Narrado em primeira pessoa, como uma memória encantada, o texto deixa evidente como o episódio calou fundo no sentimento do narrador, agora já adulto: “Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci”. 

Yolanda Masquera, premiada ilustradora que mora no País Basco, cria imagens muito sugestivas para a nova edição, com uma paleta que explora vários tons entre o marrom e o verde da mata, deixando o rio como um misterioso branco que invade os olhos. A artista inclui, ainda, na história, um cãozinho – inexistente no texto – que segue de perto toda a saga do garoto, como companhia e testemunha de seu destemor.

página do livro 'o silêncio da água'
"o silêncio da água"


Visita à feira

“Uma luz inesperada” – publicado originalmente em “A bagagem do viajante”, em 1996 – também relata um episódio que marcou a infância de Saramago: uma visita à Feira de Santarém, ao lado de um tio, para vender o resto de uma ninhada. Embora desprovidos de acontecimentos extraordinários, aqueles dois dias insistem em trazer, no silencioso apelo da memória, “uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos”. 

Desacostumado a passeios e habituado a calar alegrias, o garoto mal consegue conter os gritos de excitação ao receber o convite para ir à Feira, como se fosse um convite para se aventurar num navio pirata. Sem luxo nem conforto, a viagem a pé revela sua discreta magia na frescura da noite, no luar que deixa tudo branco refulgente, na curiosa chuva que rodeia o menino e o tio, sem chegar a molhá-los. Tudo aquilo – mesmo sendo tão pouco – é suficiente para convencer Saramago de que a infância é o paraíso perdido.

As ilustrações do mexicano Armando Fonseca, em respeito ao ambiente noturno que predomina em quase todo o texto, raramente saem do preto e do cinza. Quando aparecem os poucos traços coloridos, eles vêm para destacar a Lua, as estrelas, uma planta ou um bicho. Ainda assim, são imagens repletas de simbologia e do sentimento de maravilhoso que povoa as lembranças do narrador.

 Em ambos os livros, a editora alerta que optou por manter o vocabulário, a acentuação e a sintaxe usados pelo autor, por mais que eventualmente provoquem algum estranhamento ao leitor brasileiro. A opção se mostra acertada, pois não há nada no texto que atravanque a leitura. Quando muito, o estilo e as expressões de Saramago provocarão um barulhinho bom, um ruído que pode ser relevado pelo leitor ou que, talvez, o leve ao dicionário para verificar o que são, afinal, bácoros, marrãs, farnéis e pitanças. 

* Leo Cunha é jornalista, escritor, tradutor, mestre em ciência da informação e doutor em artes pela UFMG.Desde 1993, publicou dezenas de obras para crianças e jovens, em poesia, prosa, crônica e teatro. Suas obras receberam prêmios como o Jabuti, Nestlé, João-de-Barro, Biblioteca Nacional, entre outros. 

Capa do livro 'Uma luz inesperada'

“Uma luz inesperada”
José Saramago
Ilustrações de Armando Fonseca
Companhia das Letrinhas
32 páginas
R$ 49,90

capa do livro 'O silêncio da água'

“O silêncio da água”
José Saramago
Ilustrações de Yolanda Mosquera
Companhia das Letrinhas
32 páginas
R$ 49, 90


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