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Estado de Minas

Variações em torno de pensamentos complexos

O escritor Gonçalo M. Tavares se debruça sobre corpo e mente para produzir um atlas que procura levar ao limite as relações entre mundo físico e imaginação


14/01/2022 04:00

Paulo Paniago*
Especial para o EM
 
Há muitos mecanismos de mostrar inteligência, um deles inclusive um tanto negativo, a arrogância. Quase parece ser o caso de Gonçalo M. Tavares, esse escritor angolano que hoje vive em Portugal e ganhou um bom número de prêmios literários, entre eles o Prix Littéraire Européen 2011, ao lançar o “Atlas do corpo e da imaginação”. Mas o que de fato se pode perceber nesse livro é aquele interesse jovial que Tavares havia demonstrado quando escreveu a Coleção do Bairro, uma série de pequenos livros a respeito de grandes intelectuais, prosadores e poetas, gente como Paul Valéry, Bertolt Brecht, Robert Walser, Karl Kraus ou T. S. Eliot. A coleção (lançada no Brasil, parcialmente, pela Casa da Palavra) parecia voltada ao jovem adulto curioso. Esse “Atlas”, que agora é lançado no Brasil pela editora Dublinense, é prova do amadurecimento necessário, a fase subsequente, por dizer assim. Trata-se de adaptação da tese de doutorado apresentada, como a nota ao fim do volume esclarece, à Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, universidade na qual, aliás, o escritor dá aulas. 

Não se trata de apenas um livro, mas no mínimo dois, a se considerar as imagens feitas por um grupo chamado Os Espacialistas, e que colaborou ao que parece bem de perto do conceito central do volume. É também o que envelhecerá primeiro, me parece, as imagens que procuram traduzir certas posições do pensamento de maneira criativa, mas estão mais restritas pelas circunstâncias do que as palavras propriamente. 

Ao fazer legendas criadas para as imagens e notas de rodapé ao corpo central do texto, o conteúdo aponta para conjuntos possíveis cuja leitura pode ser feita por diferentes caminhos, o que enriquece ainda mais a obra. O livro é composto de quatro partes principais que procuram averiguar o corpo em relação ao método, ao mundo, ao próprio corpo e à imaginação. “Começar aqui é interromper uma tarefa noutro lado”, ele inicia. 

É preciso se espantar, há espaço para hesitações (desde que pensadas em pormenores que quase depõem contra a própria ideia de hesitar) que formam em algum momento uma “dialética hesitante”. Com isso, a ideia é pensar os opostos – sim e não, ser e não ser, dentro e fora etc. – e separar o que é o quê, imaginação e raciocínio, convenções e acaso. Todo investigador pesquisa porque está perdido, afirma Tavares a certa altura. Ao final da investigação estará mais forte. “Continua perdido, mas está perdido com mais armas, com mais argumentos.”

A parte mais interessante, quando ele discute métodos, encontra-se no ponto em que começa a falar do fragmento, justamente porque qualquer fragmento é uma recusa a se fechar, permanece caminho aberto, aponta possibilidades, se parece com o estado atual do mundo, que procura abolir absolutos, por vezes por meio da própria afirmação de aparência paradoxal de conceitos absolutos. “Poderemos dizer que o fragmento é uma ‘máquina de produzir inícios’, uma máquina da linguagem”, anota. O erro, a beleza, são outros tópicos que interessam ao autor discutir. A poesia e a filosofia, como assuntos aparentemente distintos, se relacionam de perto, por exemplo, na linha de raciocínio que ele formula. 

Se, ao avaliar o conceito de exatidão, Gonçalo Tavares se esquece de recorrer ao ensaio famoso de Italo Calvino contido em “Seis propostas para o próximo milênio”, não se pode puxar a orelha do autor, porque a verdade é que recorre a outros tantos pensadores que suprem de maneira mais que adequada o problema que ele pretende abordar. No caso específico, muitas das ideias são tributárias do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (confira por exemplo a numeração incluída na síntese ao fim do volume, e que lembra muito o formato adotado por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus), que perpassa bom número das referências utilizadas por Tavares. É talvez o pensador com quem ele mais se identifica. Lógico e rigoroso, mas sem deixar de lado a parte criativa e inovadora. 

É curioso que Tavares fale em risco e acaso e ao mesmo tempo seja tão minucioso, mas isso só deixa transparecer o nível de cuidado e a complexidade da mente do escritor, que se coloca ao lado dos muito inventivos, gente como Jorge Luis Borges, Calvino, Georges Perec, Enrique Vila-Matas, Marcel Bénabou. Aqueles que se divertem pensando em como transformar o livro numa aventura fascinante para além do próprio conteúdo e cuja origem comum, para não recuar muito, estaria com Laurence Sterne, logo ali no século 18, ou seja, o autor de “A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy”. O mesmo escritor que agrada tanto ao nosso Machado de Assis, a ponto de citá-lo logo no início de “Memórias póstumas de Brás Cubas”. 

O que se destaca, nesse tipo de postura, é a capacidade de produzir questões desconcertantes ou inesperadas. Gonçalo Tavares as derrama aos borbotões e se por um lado escora-se demais no pensamento alheio para propor a aventura do pensamento – talvez em cumprimento aos protocolos acadêmicos que afinal pautaram o exercício mental cujo resultado é o livro –, por outro não se esquiva de fazer provocações necessárias. E elas são muitas. 

No que acreditar


A certa altura, por exemplo, Tavares chega a botar em descrédito o próprio sistema que sustenta os argumentos que procura construir. “Eu vejo o braço do outro levantar-se, mas ‘não vejo a crença do outro levantar-se’ nem vejo o outro a ‘ver’”, argumenta. “Se ele me disser que acredita eu terei também, pela minha parte, de acreditar no que ele me diz (também o outro ficará, diga-se, sem saber se eu acredito verdadeiramente que ele acredita em algo).” Vai daí que interpretar é, como resulta, um ato, atribuição de “marca de bondade ou maldade a um ato”. Mas também é possível acrescentar na conta o potencial de desperdício que o lúdico de uma atividade desportiva, por exemplo, proporciona. E ele vai se debruçar sobre o assunto, claro.

Tavares chega mesmo a propor, na linha do pensamento de Ilya e Emilia Kabakov, uma tipologia de dois modelos básicos de pensadores que existem: “Os de cabeça baixa (depressivos, fechados) e os de cabeça alta (eufóricos, entusiastas)”. Decorre desse argumento que se torna difícil saber onde enquadrar o próprio escritor que é Tavares: entre os mais introspectivos e fechados, como a sisudez do texto aqui ou ali deixa transparecer, ou se ao lado dos eufóricos, os quase ginastas do pensamento, caso que deve ser afinal o mais provável, é de se supor. 

Todo movimento do corpo, desse movimento que passa do corpo à mente, será colocado como prolongamento potencial ou choque possível. Mas há mais, a certa altura pode-se ler Tavares a argumentar: “Qualquer movimento humano é assim sempre desastrado, não acerta completamente, há sempre um resto, e um resto perigoso”. 

Por outra parte, ele argumenta que o pensar é um mecanismo de “desligar-se do mundo”, isto é, de desamarrar-se de compromissos. O pensamento se torna assim uma “máquina absolutamente egoísta”, preocupada apenas consigo mesma. Máquina, acrescenta em outra parte, “de contestação do fim da história”. E a imaginação se vale da metáfora para fazer acréscimos ao número de coisas que existem no mundo. Ou seja, quanto mais desenfreada for a imaginação, melhor. Entre restos, sobras, limites e preocupações, Gonçalo Tavares cumpre o papel de ser um grande provocador que atinge resultados muito sólidos e instigantes. 


*Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília
 

Trecho

 
“A grande força do pensamento – e também por vezes a sua crueldade – é precisamente esta sensação de estar desamarrado de tudo: no preciso momento em que alguém nos pede ajuda urgente, podemos estar a pensar nas férias na neve que nos esperam. A crueldade – o afastamento em relação ao Outro – começa claramente nesta máquina absolutamente egoísta que é o pensamento. Sem pensamento – faça-se o exercício absurdo – o homem estaria permanentemente envolvido na relação com o exterior, ligado ao exterior. Pensar – exercer o ato do pensamento – pode ser entendido como ‘desligar-se do mundo’. Os animais (supondo nestes uma ausência de percurso interior lógico, o que não está de todo confirmado), pobres de mundo interior, estão por completo fora de si próprios; ligados, portanto, unicamente ao que os rodeia. 

‘Separamo-nos mais facilmente do mundo porque pensamos.’ E neste pensamento a capacidade para ‘construir ficções’ – mundos por vezes ainda mais complexos que o exterior – é a capacidade suprema de desligamento. Para que me dedicar, então, ao que me rodeia? Para que agir de acordo com esse único exterior, quando posso agir em diálogo com inúmeros possíveis interiores?” 
 
 
  • “ATLAS DO CORPO E DA IMAGINAÇÃO: TEORIA, FRAGMENTOS E IMAGENS”
  • Gonçalo M. Tavares
  • Dublinense
  • 528 páginas
  • R$ 159,90 


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