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Estado de Minas LITERATURA

Livro de Luís Augusto Fischer reúne ousadia e sagacidade

Mesmo com omissões e generalizações, 'Duas formações, uma história' é uma excelente provocação ao debate de ideias, algo que anda em falta no país


05/11/2021 04:00 - atualizado 05/11/2021 07:50

O escritor Luís Augusto Fischer
O escritor Luís Augusto Fischer (foto: Divulgação)
O projeto é bem ambicioso: passar em revista as principais correntes de história da literatura brasileira, enquanto tece críticas, quando pertinentes, e elogios, sempre que for o caso, para então propor caminho próprio de se estudar o assunto. O livro que resulta dessa ambição, “Duas formações, uma história: das ideias fora de lugar ao perspectivismo ameríndio”, foi apresentado como progressão à titularidade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, antes da revisão para torná-lo o volume que Luís Augusto Fischer entrega agora aos (ele admite serem poucos, tomara que esteja errado nisso) leitores que talvez se interessem pelo assunto hoje em dia. 

 

Talvez é o caso iniciar por um reparo, o subtítulo do livro, porque Fischer recua até bem antes do texto de Roberto Schwarz que fala em ideias fora do lugar, ou seja, o primeiro capítulo de “Ao vencedor as batatas”, parte de um estudo a respeito de Machado de Assis, que se completa com “Um mestre na periferia do capitalismo”. E a verdade é que o trabalho de Fischer avança até bem além do perspectivismo ameríndio que ele toma emprestado das ideias do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. 

 

Em tempos nos quais as ideias de síntese ou visão de conjunto no campo da literatura parecem provocar arrepios, a iniciativa de Fischer parece ousada e adota postura de nadar contra a corrente, o que é vantagem, claro. O estudo tem tal abrangência e cuidado na exposição dos termos e conceitos que se revela excelente provocação ao debate de ideias, algo que anda em regime de escassez nos últimos tempos. 

 

Fischer lista os clássicos estudos de Sílvio Romero, José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Nelson Werneck Sodré e alguns outros, a que chama de modelo tradicional, antes de se deter a fundo em Antonio Candido e sua “Formação da literatura brasileira”, ensaio que vê a conclusão do processo formativo da literatura brasileira com Machado de Assis e não dá explicitamente o passo de tornar o Modernismo paulista uma centralização sem reservas, como farão outros críticos, Alfredo Bosi a puxar a fila, mas de algum modo sinaliza que é isso mesmo que acontece. 

 

Em relação aos modelos tradicionais, ele apresenta algumas críticas que se ressaltam, entre elas a tendência a certo enciclopedismo (ou seja, certa ilusão de completude); o mecanismo de lançar mão de modelos tradicionalmente lineares, que apresentam uma “evolução” cronológica, difícil de se verificar na prática; o uso recorrente da tradição francesa de interpretação, a que ele chama de francocentrismo; certo essencialismo que se manifesta em nacionalismo acrítico ou em uso de aparatos importados que não se adaptam bem à realidade local; centralização excessiva (primeiro Rio de Janeiro, depois São Paulo e nada mais além disso); isolamento, na falta de diálogo com os “hermanos” latino-americanos, por exemplo; certa tendência a privilegiar apenas literatura localizada em centros urbanos (ele chama de urbanofilia); a limitação temporal que vê no Modernismo paulista a essência, talvez a conclusão, porque ainda insuperado, de tudo.

Modelo ‘Formação’

Aliás, é nesse ponto que centra a crítica de Fischer a Candido: ele não vê literatura que não seja oriunda especialmente de certos centros urbanos, primeiro ponto (ou seja, ignora a literatura que Fischer chama de sistema “Sertão”), nem percebe que as coisas não necessariamente evoluem de um movimento a outro, mas se manifestam às vezes ao mesmo tempo, o que pressupõe uma ideia de unidade nacional que na prática não se configura. 

 

Além disso, existe no estudo de Candido, não de maneira explícita, mas de fato ancorada na ideia, a perspectiva de que tudo desemboca no Modernismo paulista. 

 

O terceiro ponto é o comparatismo impreciso, que toma como modelo apenas literaturas europeias, esquecendo-se de olhar para o que se passa aqui ao lado. 

 

Por fim, a ideia de que a formação se completou com a tomada de consciência da ideia de nacional, iniciada com Machado e consolidada com o Modernismo.

Modelo ‘Ideias fora do lugar’

Quanto a Roberto Schwarz e seu ensaio provocativo, centro de um modelo historiográfico potencial, que faz “uma das mais duradouras e penetrantes fórmulas críticas produzidas no Brasil desde sempre”, as críticas se referem em primeiro lugar ao fato de a tese de Schwarz só olhar para o mundo da plantation, grafado assim mesmo, sem itálico, porque se trata de conceito histórico preciso, cujo modelo é baseado em quatro fundamentos: latifúndio, escravismo, monocultura e exportação. 

 

Fischer apresenta uma série de dados claros para mostrar que o modelo plantation não é suficiente para se entender o Brasil do período (século 19). Além disso, a tese aspira a ter validade num tempo largo, o que não se configura: por exemplo, com problemas novos que entraram na pauta, questões indígenas, natureza, direitos da mulher e dos afrodescendentes, sistema de cotas etc. Por fim, torna-se inapropriado de se fazerem certas extrapolações da tese para outros contextos, o que mostra certa inconveniência. Além do quê, a tese não cabe no mundo do sertão. Ou seja, não o aborda nem compreende outra limitação incontornável.

Modelo ‘Fischer’

Para ajudá-lo a pensar a história da literatura nacional, Luís Augusto convoca a ilustre presença do crítico uruguaio Ángel Rama, com a ideia de comarca para pensar a dimensão mais local; do crítico italiano Franco Moretti, para alcançar a dimensão do mundo (a ideia de uma “distant reading” em oposição ao “close reading”, vertente teórica oriunda do ambiente de língua inglesa); do teórico russo Mikhail Bakhtin, para se pensar em termos dialógicos (ambos/e) em vez de dialéticos (ou/ou); e do biólogo e paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould, do qual empresta o conceito de evolução (que não é o mesmo que progresso). Nesse ponto, ele aproveita para criticar o “fetiche da invenção”, a ideia persistente nas análises críticas de literatura no Brasil de que só a ruptura e a vanguarda merecem respeito e atenção. 

 

Surgem em seguida as ideias de Viveiros de Castro, do historiador Jorge Caldeira, do crítico José Hildebrando Dacanal (professor de Fischer e autor do que ele considera importantes aportes à crítica literária). Fischer chega então a mencionar dois modelos para se enxergarem formações literárias no ambiente brasileiro – Plantation, de um lado; Sertão, do outro –, para criar enfim categoria entre uma e outra (sem esquecer de mencionar o mundo amazônico, por exemplo, que poderia complicar ainda mais a equação), resultante dos choques entre os dois blocos tectônicos. Claro que Plantation se refere ao conjunto de ideias fora do lugar, tanto quanto o sistema Sertão se refere ao perspectivismo ameríndio (e agora o subtítulo volta a fazer sentido).

Soluços, não feixes

O empecilho de querer amarrar conjuntos, fortalecer o sistema, ratificar a formação é que nada disso talvez responda com garantias ao modelo brasileiro, que caminha mais por soluços (iniciativas individuais, muito mais do que por escolas, associações, grupos etc., ou qualquer influência que possam exercer) do que por feixes. Quando se junta um punhado de conceitos, algo sempre escorre por entre os dedos e escapa. O arcabouço pode ser ousado e bonito o quanto for, parece dotado de lógica impecável, organizativa, mas, de novo, algo insiste em não se comportar como previsto. 

 

Talvez o problema todo seja a ausência do elemento ‘leitor’ na equação formulada lá atrás por Antonio Candido (existe na teoria, postulado e desejado, mas não necessariamente é real quando compreendido pelas categorias analíticas, por mais que levantamentos recentes e sistemáticos tenham sido feitos e procurem provar que há leitores, onde se encontram, o que leem, como fazem escolhas literárias e assim por diante). 

 

Um dos percalços de se querer fazer a crítica da crítica literária é ter de lançar mão de recursos de outros campos do conhecimento, como história, sociologia, ciência política, vida social. Assim, o argumento se torna menos a ‘literatura’ em si do que o quadro social (ou econômico, ou psicológico, ou o que seja) em torno dela. As ferramentas da crítica — os modelos são basicamente Candido e Schwarz, mas também há várias outras vertentes sob escrutínio — sempre esbarram na contestação que outros campos de conhecimento podem agregar ou contestar. E as ferramentas desses campos evoluem para encontrar novas abordagens e possibilidades. 

 

Não que as da literatura tenham parado no tempo, não se trata disso, mas são específicas e deveriam se bastar (pelo menos em princípio, por mais abertura que se queira enxergar nas prerrogativas de a literatura ser capaz de enxergar todas as questões do mundo). 

 

Assim, quando Fischer encontra historiadores que comprovam que o Brasil não girou a economia apenas da perspectiva dos grandes latifúndios, mas fez uso concomitante de variadas formas de produção, claro que a teoria de Schwarz a respeito do sistema plantation fica comprometido ou pelo menos é visto em sua limitação. 

 

A questão que parece ter ficado esquecida diz respeito à literatura machadiana em análise. Acaso o “Memórias póstumas” pode ser considerado menos importante porque Machado não conseguiu compreender outros sistemas econômicos — o comércio, por exemplo — em andamento ou não olhou para o campo? Claro que não, o que Machado pretende abordar e consegue é um sentimento de certa classe, com certas prerrogativas e privilégios, e isso está lá na literatura que fez (e na compreensão de Schwarz, sobretudo no que respeita ao conceito de volubilidade do narrador e de como isso é representativo de certa elite e do modo de conduta adotada na vida pública nacional, além de ser um mecanismo inovador para o próprio sistema literário). A impressão que se tem, a certa altura, é que Fischer se esqueceu de olhar para a literatura, de tão divertido que estava tratar de outros assuntos a partir de uma crítica possível à crítica existente.

Cinco ideias inovadoras

A impressão, no entanto, se dissolve com a leitura do que ele de fato tem a dizer de novo, embora se apresente de maneira um tanto contraída. É o posfácio, com cinco ideias breves, que mostra o quanto o pensamento de Fischer pode ser desdobrado de maneira autônoma e com sagacidade inovadora, depois de cumprido o sobrevoo de análise sobre o passado das vertentes críticas que mais se ressaltam. 

 

Eis as ideias: concepção de crista e base da onda para mostrar certos momentos coetâneos de manifestação literária; gradiente de tensões que supera dualismos triviais (inclusive esse mesmo dos sistemas de Plantation e Sertão de que ele trata); abertura para incorporação do que ele chama de artes e ofícios da palavra (capazes de incluir no elenco literatura para crianças, canção, teatro, cinema, teledramaturgia, ópera, samba-enredo, histórias em quadrinhos, cartuns e romances gráficos); certa teoria das três atitudes, que depois do luto e melancolia freudianos menciona também a possibilidade de euforia na leitura possível em relação a alguns autores, numa modalidade algo frívola que talvez requeira mais análises em relação à literatura brasileira, porque parece ter aí uma chave qualquer que resolve parte da questão; por fim, uma rede de relações entre matéria (ou conteúdo, vá lá) e escolha de voz narrativa, em outras palavras, como representar o andar de baixo sem o pedantismo do narrador, geralmente representante do andar de cima, ou reproduzir o discurso, em modo direto, indireto ou indireto livre e, por último, a arquitetura narrativa, ou seja, as vozes do narrador (terceira pessoa impessoal, terceira pessoa coral ou primeira pessoa). 

 

Agora que Luís Augusto Fischer parece ter se desobrigado de passar em revista tantas vertentes dos estudos literários e se desincumbido das explicações acadêmicas (que afinal são necessárias às pretensões, ora cumpridas), talvez se possa esperar que nos próximos livros ele vá se sentir de fato à vontade para apresentar com mais detalhes as ideias próprias que se mostram bem promissoras e que apareceram apenas de raspão no posfácio. 

 

*Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília

 

Capa do livro 'Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio', de Luís Augusto Fischer
(foto: Reprodução)
“Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio” 

De Luís Augusto Fischer

Arquipélago Editorial

400 páginas

R$ 79,90


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