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Estado de Minas

O alerta de Davi Kopenawa em livro e filme

A releitura de "A queda do céu" e o documentário "A última floresta", de Luiz Bolognesi, amplificam a voz do xamã yanomami


24/09/2021 04:00 - atualizado 24/09/2021 11:00


Há um mundo em perigo devido a ações, omissões, conceitos e preconceitos. O mesmo mundo em que vivem todas as criaturas, mas entre as criaturas há as que se julgam com poderes sobre a vida e a morte, e arrastam o ambiente para o chamado ponto de não retorno – aquele em que a destruição se tornará irreversível. No Brasil, onde as políticas de governo colocam em risco todo o planeta, soa a voz que explica ao mundo esse embate entre a vida e a destruição – e mostra a urgência de interrompê-lo: a voz do xamã ianomâmi Davi Kopenawa. Neste momento de tensão, é fundamental conhecer suas palavras, que vêm das profundezas da floresta. 

A floresta é criatura ancestral. Omama, o demiurgo da mitologia ianomâmi, é o criador das árvores, das plantas, dos animais, da terra, dos rios, dos ventos e dos seres humanos. A história de Omama, da floresta e dos humanos – os que lá vivem e os que se apartaram da natureza – é narrada por Kopenawa ao antropólogo francês Bruce Albert, que transformou mais de 60 horas de gravação num livro extraordinário, “A queda do céu – Palavras de um xamã yanomami”. 

A riqueza de imagens do livro e da história ianomâmi inspirou o filme “A última floresta”, dirigido por Luiz Bolognesi, com roteiro de Davi Kopenawa e Bolognesi, vencedor do prêmio de público na mais recente edição do Festival de Cinema de Berlim. Embora não seja uma versão filmada de “A queda do céu”, é um documentário de grande beleza plástica, de linguagem poética e concisa, que complementa o livro e é complementado por ele. 

“A queda do céu” é “um acontecimento científico incontestável”, como disse, no prefácio, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Em suas 768 páginas, está dissecada a grande tragédia da floresta, dos ianomâmis e todas as nações indígenas, da história do Brasil. Lançado em 2015 pela Companhia das Letras, com sucessivas reedições, é cada vez mais um documento antropológico e espiritual da maior importância para a compreensão dos equívocos do mundo ocidental e da falência da civilização. 


Seres malévolos

Kopenawa reflete sobre as relações históricas entre os povos originários do Brasil e a gente que construiu esta nação escravocrata, racista, preconceituosa e egoísta que desaguou nestes tristes tempos de governo etnocida: os brancos, que podem ser negros, pardos, brancos, morenos e uma vasta gama de cores, são os seres malévolos que perderam os vínculos com suas origens biológicas e passaram a devastar tudo em sua passagem – inclusive a vida e o futuro. Constroem máquinas gigantescas para destruir florestas, escavam a terra para delas arrancar a alma, transformam os rios em lamaçais venenosos e se apertam em cidades, dentro de casas amontoadas sobre uma terra estéril, vivendo uns sobre os outros e correndo sem parar.  

“A queda do céu” pode ser lido em princípio como a voz de um xamã ianomâmi, transcrita de gravações realizadas entre 1989 e 2001, que se derrama como luz sobre os mistérios de tudo aquilo que não se encaixa nos moldes do “mundo civilizado”. Os xamãs ianomâmis são guerreiros do mundo espiritual, que fazem a conexão entre o mundo visível e o mundo invisível. Dialogam com os espíritos da floresta, as forças sobrenaturais e as forças naturais. 

Ao emprestar sua voz à “pele de papel” da cultura civilizada, Davi Kopenawa apresenta os espíritos ancestrais dos povos originários, que vivem em harmonia com os espíritos dos animais e dos vegetais, e assim com todas as criaturas, em condições de igualdade na floresta. “A queda do céu” é não apenas a voz do xamã ianomâmi: é a voz de todos os espíritos que convivem nesse universo de difícil compreensão para os civilizados. É a voz das árvores, dos animais, dos rios, dos fenômenos da natureza, da terra e de todas as suas riquezas. Não é uma voz fragmentada, é uma voz única. É a voz da própria floresta, criatura viva que os “seres malévolos” estão retalhando para dela roubar a vida.  


Criaturas ignorantes

A experiência de Davi Kopenawa foi enriquecida pela sua vivência junto aos brancos, paralela à sua formação como xamã. Primeiro conviveu com os missionários evangélicos, que tinham a pretensão de invadir a cultura ianomâmi e apresentar-lhes o deus civilizado e todo o seu arsenal de pecados, obrigações e culpas. Conheceu as cidades dos brancos, o pensamento dos brancos, a lógica dos brancos. Viajou pelo mundo, recebendo homenagens e premiações. E adquiriu uma compreensão privilegiada da civilização. 

 Na infância e adolescência, Davi Kopenawa almejou ser um branco. Queria conhecer outras gentes, viajar para outras terras, usar as “mercadorias” dos brancos – ferramentas para facilitar o plantio, como machados e facões, anzóis e linha, redes e roupas, espingardas, óculos e relógios. E remédios, porque as doenças trazidas pelos brancos estavam dizimando seu povo e matando seus familiares. Davi foi trabalhar na Funai. Nessa ocasião, visitou pela primeira vez uma cidade dos brancos, Manaus. Tomou conhecimento do dinheiro, “pedaços de pele de papel que trocavam por comida”. Do barco, observava as luzes que piscavam em todas as direções, os aviões cruzando o céu, carros enfileirados ao longe na beira. Os brancos eram tantos, e se atropelavam em todos os sentidos, como formigas xirina, tinham máquinas para correr por toda parte – tudo muito assustador. Davi descobriu que os brancos são criaturas ignorantes. Têm o pensamento concentrado em seus objetos, sempre querem coisas novas, amontoam mercadorias e comida, trancam a chave seus pertences e vivem com medo de ser roubados. Por isso, cobiçam o metal da floresta e espalham o sopro maléfico de suas fábricas. 

A narrativa de Kopenawa ilumina o olhar do leitor e o transporta para aquele mundo em que vive, e que o branco desconhece. A imagem edênica do índio que vive na floresta e tem ao seu alcance tudo o que necessita, e por isso vive em estado primitivo, é fruto dessa ignorância identificada pelo xamã. 

A leitura de “A queda do céu” abre as portas de um conhecimento que dificilmente pode ser alcançado por indivíduos atolados em um mundo absolutamente diverso – materialista, predatório, imediatista – como escravos de um sistema cujo sentido desconhecem. A floresta é a síntese de um universo físico e espiritual, uma estrutura frágil em seu equilíbrio, mas poderosa geradora e mantenedora de vida. Uma entidade composta por seres que desempenham, cada um, um papel dentro do mesmo organismo vivo. 

É esse universo que está em risco, devido ao desejo obscurantista dos brancos. O garimpo destrói os rios, fazendeiros derrubam a mata para dar de comer ao gado, os madeireiros matam em poucos minutos as árvores que levaram centenas de anos para crescer, o governo, ignorando a legislação aprovada e vigente, abre estradas e destrói a floresta, as doenças da civilização infectam os povos que lá vivem. Tudo isso junto destrói um mundo físico e espiritual, de extrema riqueza, cujo equilíbrio é fonte de vida. Entre os ianomâmis, o sarampo, a tuberculose e a malária chegaram com os missionários, que pretenderam levar a eles um cristianismo preconceituoso e conceitos como pecado, paraíso e inferno, com suas proibições, ameaças e promessas não cumpridas. Ainda assim, muitos índios e até xamãs aceitaram as ideias de Teosi – o Deus dos brancos –, mesmo sem compreender sua postura opressora, em total desacordo com seu próprio mundo espiritual, feito de uma fusão entre memórias, crenças e sonhos. 


Vida ou morte 

Davi Kopenawa sabe que a luta pela preservação de seu mundo é uma luta de vida ou morte. Os recentes ataques de garimpeiros, com fuzis, metralhadoras e bombas, contra os ianomâmis e outros povos, não só na Amazônia, fazem parte de um projeto mais amplo de genocídio. “Mais tarde, na floresta, talvez morramos todos. Mas não pensem os brancos que vamos morrer sozinhos. Eles não vão viver muito tempo depois de nós. Mesmo sendo muitos, eles não são feitos de pedra. Seu sopro de vida é tão curto quanto o nosso.” A queda do céu, segundo os xamãs, atingirá todos. E isso é tão claro, como é possível tamanha cegueira e insensatez? As palavras de Davi não são uma ameaça, mas um alerta. A aparente ingenuidade do discurso do xamã ianomâmi revela um apelo à vida, e não promessas de vingança. 

Em trecho fundamental de “A queda do céu”, Davi conta: “Brancos visitam sempre nossas casas. Suas palavras entram em nossa mente e a tornam sombria”. Além de garimpeiros, fazendeiros, governo, doenças, há outra ameaça: o apelo que as mercadorias representam para alguns jovens, que trocam os afazeres da tribo pelo futebol, escutam rádio e sonham em deixar a floresta. “Isso nunca vai dar nada de bom. Se continuarem nesse caminho escuro, vão acabar só bebendo cachaça e se tornando tão ignorantes quanto eles.” 

A floresta perdeu o silêncio – essa é uma das frases emblemáticas recolhidas nas mais de 700 páginas de “A queda do céu”. A harmonia sonora dos cantos dos pássaros e das vozes dos animais, da água das corredeiras, do vento agitando as folhas das árvores, foi quebrada pelo ruído dos aviões nas pistas clandestinas, das explosões do garimpo ilegal, dos grandes tratores abrindo estradas. “As palavras dos brancos só iriam sumir mesmo de nossa mente se eles parassem de se aproximar de nós e de destruir a floresta. Tudo então voltaria a ser silencioso como antigamente e ficaríamos de novo sozinhos na floresta. Nosso espírito se aquietaria. Mas é claro que isso não vai mais acontecer.” 

É preciso compreender a mecânica desse mundo repleto de vida, em que seres humanos, animais, vegetais, minerais e espirituais têm o mesmo valor e compartilham o mesmo organismo, para assimilar a sabedoria das criaturas da floresta, e para perceber com profundidade o espírito predador do humano branco, dotado de impulso destruidor e maléfico.


“A última floresta”
• Documentário de Luiz Bolognesi
• Roteiro de Bolognesi e Davi Kopenawa
• Brasil, 2021, 74 minutos
• Em cartaz nos cinemas

“A queda do céu”
• Davi Kopenawa e Bruce Albert
• Tradução de Beatriz Perrone-Moisés
• Companhia das Letras
• 768 páginas
• R$ 87,90


Jornalista e escritor mineiro, Alexandre Marino vive em Brasília 


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